Há situações em que conflitos diplomáticos entre dois países impedem que seleções ou equipes de uma nação atuem em território de outra. Israel, por exemplo, campeã asiática de 1964, teve de encerrar sua participação no campeonato asiático para jogar uma competição europeia, passando a atuar, por causa de divergências com países árabes, nas Eliminatórias para a Eurocopa.
A partir da globalização e da abertura de mercados, porém, o futebol se tornou motivo de intercâmbio e não mais de afastamento, justamente pelos ganhos que podem ser obtidos por meio do esporte.
O confronto entre Manchester City, ligado aos Emirados Árabes Unidos, e PSG, ligado ao Qatar, na próxima terça-feira (4), que irá definir o primeiro finalista da Champions League de 2020-2021, está sendo chamado, entre outras denominações, de "Derby do Golfo e "The Oil Derby", em referência ao Golfo Pérsico e ao petróleo, principal produto local.
Qatar e Emirados Árabes Unidos participam desta nova fase desde que ampliaram profundamente seus investimentos no esporte, considerando o futebol como uma espécie de cartão de visitas para introduzir novos produtos pelos quatro cantos do mundo, por meio da visibilidade das equipes.
Nem mesmo o recente rompimento diplomático de ambos, que durou cerca de quatro anos (2017-2021), impediu cada um desses países de ingressarem no futebol europeu e, nesta semifinal de Champions, estarem por trás de cada um dos participantes.
Em 2008, Abu Dhabi United ou City Football Group, comprou o Manchester City, e, desde então, especula-se que investiu cerca de 1 bilhão de libras (R$ 7,5 bilhões) na equipe que iniciou com vitória a disputa das semifinais da Champions League, vencendo o PSG no primeiro jogo por 2 a 1.
O grupo de Abu Dhabi pertence ao xeque Mansour bin Zayed bin Sultan bin Zayed bin Khalifa Al Nahyan, meio-irmão do atual presidente dos Emirados Árabes (emir, governante) e prefeito de Abu Dhabi, Khalifa bin Zayed Al Nahyan, e ligado ao governo dos Emirados.
“Para o Manchester City, estamos falando mais em uma lógica econômica. Estão se esforçando para criar uma verdadeira empresa esportiva multinacional. O City está no coração de uma holding, o CFG (City Football Group), que tem nove clubes em todo o país. o mundo, especialmente na França agora com o Troyes (da Ligue 2). É o centro de um grupo de franquias ", afirma Jean-Baptiste Guégan, autor de "Geopolítica do esporte. Outra explicação do mundo", para a França 24.
“O objetivo do CFG é, assim, criar sinergias entre os clubes e tirar partido delas através do desenvolvimento dos jogadores, da sua promoção, das suas transferências e da explosão dos direitos televisivos. É também reunir patrocinadores para os adaptar aos mercados locais através dos clubes", completa
O PSG, por sua vez, pertence, desde 2011, ao fundo soberano QSI (Qatar Sports Investments), empresa vinculada ao QIA (Qatar Investment Authority), órgão do governo do Qatar voltado para investimentos estratégicos que ajudem a introduzir o país em um mercado diversificado e global. O proprietário do QSI é o próprio xeque e governante do Qatar, Tamim bin Hamad al-Thani.
“O PSG é o clube e a marca de um Estado, o Qatar. A rentabilidade do projeto é incidental. O Qatar (sede da Copa do Mundo de 2022) quer adquirir uma imagem moderna através do esporte e também se aproximar das elites ocidentais ao se estabelecer em uma capital europeia”, ressalta Guégan.
Conflitos políticos
Por tais interesses, seria impossível pensar, com relação a uma disputa entre City e PSG, em uma situação similar à da seleção israelense. Os motivos econômicos ultrapassam os conflitos e não haveria possibilidade de, devido ao rompimento recente entre os dois países, de um jogo assim não ocorrer.
"Tudo é uma história de estratégia de marca. Estar ligado a torneios de prestígio de um lado, a clubes sedutores e vitoriosos de outro. No final das contas, trata-se de política, poder e influência, não de futebol", afirmou Nicholas McGeehan, diretor da Fair Square Projects, em declaração à AFP.
Qatar e Emirados Árabes têm linhas diferentes de atuação no Oriente Médio. O Qatar mantém ligações mais estreitas com o Irã xiita, enquanto os Emirados Árabes estão ao lado da Arábia Saudita, sunita. Irã e o governo saudita disputam a hegemonia da região.
Ambos têm ligação também com os Estados Unidos, que mantém no Qatar uma de suas bases no Oriente Médio e também tem negócios atrelados à Arábia Saudita, além de bases militares.
O governo americano, porém, acabou por participar da pressão sobre o Qatar, feita pelos países liderados pela Arábia Saudita, que acusavam o governo do Qatar de dar apoio a grupos terroristas, entre eles a Al-Qaeda e o Daesh.
A acusação foi negada pelo Qatar, mas houve um rompimento diplomático entre Arábia Saudita, Iêmen, Emirados Árabes Unidos, Egito, Maldivas e Bahrein, que, em 2017, anunciaram a interrupção das relações diplomáticas com o governo do Qatar. A decisão só foi revogada em janeiro de 2021.
Entre as sanções estava a proibição de receber embarcações do Qatar, o que prejudicou a economia do país, muito dependente da importação de alimentos.
Com a revogação das sanções, a situação política se tranquilizou. Mas as divergências ainda existem, porque Irã e Arábia Saudita mantêm a disputa hegemônica. Que só é superada quando os interesses econômicos prevalecem.
PSG e City têm ajudado o Oriente Médio a se relacionar com o mundo, abrindo mão de radicalismos e se pautando pela diplomacia econômica.
O futebol, neste sentido, pode ser um instrumento de investimentos bilionários, de interesses às vezes pouco transparentes, de rivalidades, de ganância. Mas mantém, nesta era de cifras nas alturas, o mesmo potencial de promover a paz.