Hoje visto como um time do povo e de todas as cores, o Flamengo passou suas primeiras décadas sem aceitar negros no quadro de atletas, num processo que só começou a mudar a partir dos anos 1920, para se consolidar a partir de 1930.
Neste contexto, o pioneirismo negro no clube é marcado pela imprecisão e pela subjetividade. E dois nomes em especial protagonizam este cenário: os atacantes Nonô e Jarbas simbolizam a complexa questão racial do futebol brasileiro em seus primeiros anos.
O "mulato" Nonô
Claudionor Gonçalves da Silva, o Nonô, chegou ao Flamengo em 1921, antes da profissionalização do futebol, e foi o primeiro grande artilheiro do clube. Alto, forte fisicamente, não enchia os olhos pela técnica, mas tinha facilidade em balançar as redes.
Em 1923, Nonô foi o maior goleador do Campeonato Carioca, com 17 gols – nenhum outro atleta rubro-negro havia conseguido a façanha até então. Ao todo, foram 122 gols em 141 partidas. Morreu novo, com 32 anos , vítima de tuberculose.
Nonô, pelos relatos da época e em registros históricos, era considerado "mulato". É um dos casos mais antigos de jogador não-branco a atuar pelo Flamengo. O primeiro foi o atacante Arthur Friedenreich, filho de pai alemão e mãe negra, que defendeu o clube em jogos festivos em 1917.
Jarbas, a Flecha Negra
Oficialmente, o Flamengo considera Jarbas o primeiro jogador negro a jogar pelo clube. O ponta-esquerda, conhecido como “Flecha Negra”, chegou ao clube em 1933 - antes, disputou amistosos com outros três atletas negros, Roberto, Gradim e Ladislau da Guia.
Após os jogos, apenas Jarbas e Roberto permaneceram no Flamengo. Jarbas, de longe, foi quem teve mais sucesso no clube. Ao todo, marcou 153 gols em 380 jogos - ele é o sexto maior artilheiro da história do clube. Roberto, por outro lado, disputou a Copa do Mundo de 1938, pelo Brasil, mas como jogador do São Cristóvão.
Primeiro goleiro rubro-negro da era profissional, Fernandinho afirmou, em entrevista aos autores do livro “100 anos de bola, raça e paixão: a história do futebol do Flamengo”, que Jarbas foi o primeiro “negro de verdade” a jogar pelo clube. Mas e Nonô? Para o ex-goleiro, ele era “mulato”.
O conceito de colorismo
Nonô atuou em um período em que jogadores negros não eram aceitos nos principais clubes cariocas. Pesquisador da UFRJ e autor do livro “História, conceitos e futebol: racismo e modernidade no futebol fora do eixo”, o historiador Ricardo Pinto explica que o “embranquecimento” de jogadores era uma prática comum naquela época e que permanece até os dias de hoje, a exemplo de atletas negros que não se reconhecem como tal.
A situação de Nonô pode ser encarada sob a perspectiva do colorismo. É a ideia de que o tom de pele pode facilitar ou dificultar o acesso a determinados espaços: quanto mais escuro, maiores são as dificuldades para o cidadão que vive em uma sociedade racista.
- Além da cor, aspectos como formato do nariz e boca e textura dos cabelos trazem uma complexa rede de simbolismos, marcas e, fundamentalmente, experiências. Ou seja, quanto mais nos aproximamos dos aspectos e características daqueles que o senso comum entende como “preto”, nos tornamos um alvo maior para todo o tipo de violência - explicou Ricardo Pinto.
O pesquisador conta que o Brasil viveu de maneira intensa, entre os séculos XIX e XX, o determinismo biológico e o racismo científico - teorias racistas que buscavam colocar o negro em lugar de inferioridade com o respaldo dessa pseudociência.
- Nesse sentido, todo o esforço para obter vantagens através da exploração dos corpos pretos deveria vir através de um esforço em negar a sua negritude. Seja chamando estes homens e mulheres de mulatos, ou mesmo de “negros com alma branca”. Havia a ideia de que a mistura das raças produziria o mestiço, que seria um “degenerado”. Ou seja, isso serviu para oprimir e negar a potencialidade do negro.
Atletas como Nonô e Jarbas são importantes para a representatividade e por quebrarem barreiras para uma categoria que se tornou unanimidade no futebol brasileiro. No entanto, Ricardo afirma que os clubes, na época, não tinham a intenção de enfrentar estruturas racistas, apenas interesses ligados às conquistas esportivas e econômicas dessas instituições.
- Os clubes agiram para atender as suas necessidades esportivas e econômicas, não para ajudar a população negra numa mudança social profunda e estruturada. O corpo negro passou a ser explorado pela máquina do futebol e a gerar recursos para o clube, mas, ao fim e ao cabo, nada foi feito para que eles fossem entendidos como cidadãos plenos - finalizou Ricardo.
Depois de Jarbas, o Flamengo passou a mudar de vez sua política. Ainda na década de 1930, o então presidente rubro-negro, Bastos Padilha, iniciou uma campanha para popularizar o time.
Para isso, trouxe diversos jogadores negros de destaque, como Leônidas da Silva, Domingos da Guia e Fausto. Foi um dos passos decisivos para que o clube alcançar o apelo popular do qual desfruta até hoje.