“Pela graça de Deus, todas as nossas Igrejas aceitam não somente as Sagradas Escrituras, mas também os três credos, a saber o Credo Apostólico, o Niceno e o Atanasiano, como também os primeiros seis concílios, no que eles definiram a Respeito da bendita Trindade, da Pessoa do Filho de Deus e suas duas Naturezas e também a respeito da Salvação dada para nós através dEle. Pois reconhecemos que o que quer que Tenha sido decidido neles [nos Concílios] sobre essas questões, estão De acordo com a revelação divina.” - Petrus Vermigli, Dialogus De Utraque in Christo Natura. P:40.
A convite do Rev. Manoel Augusto, venho na condição de historiador e estudioso da Reforma Protestante, em comemoração aos 119 anos da Igreja Presbiteriana de Estância, apresentar a sociedade estanciana um ensaio da síntese historiográfica desta pioneira igreja protestante em nossa cidade, algo até então jamais feito e ignorado pelos livros de história do município.
Manoel Augusto, atual pastor da Igreja Presbiteriana de Estância
O “protestantismo”, é um movimento religioso cristão consolidado no século XVI, sendo o monge agostiniano chamado Martinho Lutero o primeiro a ter sucesso na implementação de uma reforma(reformatio) eclesiástica. A principal característica desta religião gira em torno da ênfase ao sola scriptura, termo em latim(somente a Escritura) cujo significado é a Sagrada Escritura como a principal autoridade e regra de fé infalível da Igreja, e que as demais fontes de autoridade como a Tradição e os Concílios devem estar submetidas a Ela1.
Sua chegada às terras do Brasil foi por volta de 1555 quando os franceses fundaram a França Antártica(atual Rio de Janeiro), o então vice almirante Villeganon tenta criar uma espécie de refúgio para os calvinistas perseguidos por Henrique II em sua pátria mãe, a vertente chamada “calvinista”2, chamada pelo “Príncipe dos pregadores” Charles Spurgeon de “apelido para o Evangelho”, fora pioneira nas Américas; inclusive este evento resultou na produção do primeiro documento protestante das Américas, a Confissão de Fé de Guanabara em 1557, bem como infelizmente os primeiros mártires protestantes. O chamado “Aquino protestante”, João Calvino, reformador francês em Genebra, pessoalmente incentivou às missões evangélicas no Novo Mundo. No entanto, ainda no século XVI foi John Knox, pavor de “Maria sangrenta(Maria I)” quem consolidou o presbiterianismo na Escócia. Aliás podemos assinalar a presença de luteranos, tais como o escrivão Heliodor Hesse em 1554 e o aventureiro Hans Staden que cantou hinos de Lutero e erigiu a primeira capela evangélica enquanto estava prisioneiro dos tupinambá em 1550.
No século XVII, durante as invasões holandesas no atual território nordestino, cuja liderança foi confiada ao militar protestante Maurício de Nassau, os flamengos fizeram alianças com os potiguara, onde alguns foram transformados professores e um inclusive em Pastor, conhecido como João Gonçalves, indígena que fora Pastor auxiliar de Thomas Kemp – possivelmente o primeiro Pastor “brasileiro” e das américas, desbancando o ex-padre Manoel da Conceição do século XIX, sendo fundada a primeira igreja evangélica do Brasil, a Igreja Reformada Potiguara por indígenas e holandeses.
Em 1810 com o Tratado de Aliança e Amizade e o Tratado de Comércio e Navegação assinados por Portugal(católica romana) e Inglaterra(protestante) acentuou a chegada de protestantes no Brasil colonial, mas é apenas na década de 50 do séc. XIX que é chegado um maior fluxo de congregacionais e presbiterianos no Brasil. O Rev. Ashbel Green Simonton, estadunidense formado no Seminário Teológico de Princeton através da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos(PCUSA), trouxe o presbiterianismo ao Brasil em 1859 no Rio de Janeiro; sendo considerado o fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB).
Finalmente em 1863 a província de Sergipe del Rey é alcançada pelo presbiterianismo3, sendo a vertente pioneira do protestantismo em Sergipe, por meio do colportor(colportier) Pedro Nolasco de Andrade, sucedido por tantos outros colportores que araram o solo sergipano para os missionários vindouros. A duras penas, os presbiterianos conseguiram se estabelecer e organizar sua primeira igreja em 1884, na estratégica cidade de Laranjeiras organizada pelo Rev. Blackford sob administração missionária da Igreja Presbiteriana de Salvador. Nesta época estava em vigor a Constituição de 1824, reinado de D. Pedro II, onde o artigo 5° preceituava:
“A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.”
O primeiro Pastor protestante a residir em Sergipe, possivelmente o fundador da primeira escola evangélica do Nordeste(a Escola Americana em 1886) e o primeiro a trazer o presbiterianismo em Estância, foi o incansável estadunidense o Rev. John Benjamin Kolb entre 1886 e 1892 em suas longas viagens a cavalo pelo interior4. O seu sucessor em Sergipe foi o estadunidense Rev. Woodward Edmund Finley. É registrado que em 1894 a convite de Finley, o Rev. Chamberlain passou 50 dias pregando nas principais cidades do Estado, possivelmente passando por Estância. Em 1901 Finley juntamente com os reverendos Bixler, Chamberlain e William A. Waddell organizaram a Igreja Presbiteriana de Aracaju.
O Rev. Cassius Edwin Bixler nascido na Pensilvânia, bacharelado pelo Colégio de New Jersey do Seminário Presbiteriano de Chicago e Princeton, exerceu o pastorado em Armstrong e Iowa antes de chegar em 1896 diretamente em Sergipe sucedendo Kolb e Finley. Em Outubro de 1902 passou a residir em Estância a mando da Missão Central do Brasil, permanecendo no “Jardim de Sergipe” durante 10 anos, inclusive foi representante do jornal “O Puritano” nesta cidade, onde municiava os crentes de informações e material evangelístico. Neste intermédio com um núcleo de crentes em constante expansão das mais variadas classes e profissões5 em 27 de Março de 1905 o Rev. Bixler organizou a Igreja Presbiteriana de Estância(IPE) na chamada “Rua do Bispo”, permanecendo até hoje, ironicamente na rua onde residiu o Pe. Domingos Quirino de Souza(1813-1863), primeiro sergipano a ser nomeado Bispo.
Considero a cidade de Estância como o 3° polo mais importante de expansão do protestantismo do Estado naquela época, não apenas pela ordem de organização das igrejas, mas pela relevância econômica, cultural e intelectual da cidade no início do século XX. A partir da Igreja Presbiteriana de Estância, foram abertos tantos outros trabalhos em vários municípios, missionários foram formados, professores e escolas paroquiais (Estância em 1903) foram criadas durante a administração de Bixler juntamente com sua esposa a professora Florence B. Elwell Bixler que trouxeram consigo uma estética educacional distinta e inovadora da jesuítica, bem como valores liberais, republicanos e democráticos. Foi sob a luz do “livre exame”, um dos gritos da Reforma ecoados em todo o mundo, onde muitos foram alfabetizados, despertaram senso crítico, cívico, moral, e memorizaram trechos da Bíblia na sua língua materna. A invenção protestante da Escola Bíblica Dominical(EBD) em 1780 pelo anglicano Robert Raikes antecede o sistema educacional público. Foram presbiterianos que trouxeram à Estância possivelmente o primeiro curso de inglês através da D. Penélope de Magalhães conhecida como “a mulher mais culta de Sergipe”, esposa do Pastor Antônio dos Santos6, o mesmo que foi desafiado para um debate em 1919 pelo Frei italiano Francisco de Urbania, evento este que envolveu toda a cidade, e que foi impedido de acontecer devido a fanáticos católicos munidos de pedaços de paus e pedras cercando o Paço Municipal(local do debate), provavelmente inflamados pelo clero romanista (tal coisa não era novidade)7. Apesar disso tudo é interessante citar o registro da presença em Estância do evangelista Franklin Thomas Graham em 1912 e do educador Harold Charles Anderson em 1915 a mando da Missão. A neta do primeiro protestante de Sergipe, o Sr. Manoel dos Santos David, era estanciana, a Sra. Zélia Andrade(1915-2013) juntamente com seus pais e irmãos congregaram na IPE e tiveram contatos com os nomes citados acima.
Entre 1884 e 1913 a Missão Central do Brasil(Bahia, Sergipe, Goiás, Mato Grosso, norte de Minas) subvencionada a Junta de Missões Estrangeiras de Nova York, financiou trabalhos educacionais e evangelísticos em Sergipe, contribuiu com a formação de missionários, pastores, escolas paroquiais, o mantimento dos mesmos e outros; porém a partir de 1900 ocorreu uma crise financeira na Missão, em 1902 Bixler foi “forçado a preparar membros da igreja de Sergipe que desejassem ser pastores e professores para diminuir gastos com os de fora”, tornando assim um “campo autossuficiente” 8; em 1904, mesmo ano onde Estância residiu a reunião da Missão, o esperado aconteceu, a Missão começou a retirar seus representantes em Sergipe, decidida a focar mais nos trabalhos da Bahia. Em 1913 tanto a escola paroquial de Aracaju e Estância deixaram de aparecer nos orçamentos 9 e entraram em processo de declínio. Foi neste intermédio que as relações entre os presbiterianos brasileiros e estadunidenses se estremeceram por discordâncias quanto ao método de ensino(1888, ano em que a Igreja Presbiteriana do Brasil se tornou autônoma da PCUSA) das escolas; um “abrasileiramento” e um movimento “nativista” contrário ao “americanismo” cresceu com a Proclamação da República(1889); mais tarde a “questão maçônica”(1898-1899) viria a tona, o que culminou em 1903 do Rev. Eduardo Carlos Pereira e seus companheiros deixarem o Sínodo da IPB e organizarem a Igreja Presbiteriana Independente conforme aponta o historiador calvinista francês Émile Léonard.
A partir de então com a ascensão dos batistas, do pentecostalismo, e o encerramento da contribuição da Missão o presbiterianismo perde o protagonismo em Estância e Sergipe, a IPE seguiu convivendo com a intolerância religiosa e a passos mais lentos nas décadas seguintes, inclusive pouco se sabe deste período, a maior parte dos documentos viraram cinzas, chegando em certos momentos a ponto de quase perder sua memória e identidade ortodoxa por influências externas, o que serve de alerta para a preservação de sua própria história.
Todavia nela esteve consagrado como presbítero entre as décadas 40 e 50, chamado por Carlos Modesto de “um baluarte do magistério”, que dentre outros foi pastoreado pelo Rev. Josias Campos de Oliveira e o Rev. Antonio Marques da Fonseca Junior, o Prof. Azarias José dos Santos(1882-58) fundador do Educandário Esperança(1928-58). Lembremos também do Sr Valter Francisco de Lima que foi presbítero por mais de 60 anos pai da então Coordenadora Pedagógica da EBD, a Profa. Nai; meu bisavô paterno o Presb. Pedro Teixeira de Castro(1907-86), comerciante e poeta, o Presb. José Aldelino Alencar, e o Presb. Daniel Bastos; em outras congregações tivemos o Presb. Pedro Francisco e o Presb. Bevenuto, todos estes contemporâneos.
Temos registros da atuação do Reverendo pernambucano Alfeu Barra de Oliveira, filho de Martinho de Oliveira, fundador do SPN(Seminário Presbiteriano do Norte em 1899), seu padrasto o Rev. Antônio Almeida traduziu para o português o famoso hino “The Old Rugged Cross(Rude Cruz, n° 266 HNC)”; o mesmo pastoreou em Aracaju, em Estância e região de forma intermitente e ampla entre a década de 30 até 70 notamos sua presença, sendo muito querido por todos. Devido as cirscunstâncias, não houve uma ordem sucessória uniforme, tendo por vezes pastores não eleitos e atuando em conjunto evangelistas, missionários e co-pastores. Todavia podemos identificar a atuação dos seguintes reverendos desde a década de 50: Adelson, Sebastião Armínio, Walter Reis Donald, Etnatan, Jazon, Claudionor, Bianor Dias de Oliveira e Neemias. A partir de 1990 até então: Luciano Gusmão, Ecílio, Edson Teixeira, Lenízio Arrocha, Marcos Paixão, Euquias, Augusto César, Benjamin, Josmar Torres(1956-20) e atualmente o Rev. Manoel Augusto.
A frutífera Igreja Presbiteriana de Estância possui hoje 6 congregações (Porto do Mato, Ribuleirinha, Massadiço, Nova Descoberta, Saguim e Indiaroba), é a 110° igreja presbiteriana do Brasil, a 22° do Nordeste e a 3° de Sergipe, de 5.420 igrejas presbiterianas no Brasil(IPB) atualmente. O Calvinismo é a segunda maior vertente cristã do mundo se somado os 100 milhões de pessoas da Comunhão Mundial das Igrejas Reformadas, os 90 milhões de pessoas da Comunhão Anglicana e os 51 milhões de pessoas da Aliança Batista Mundial. Sua influência perpassa a economia, música, educação, ética e tantas outras questões.
Sami França Silveira*
*Graduando em História pela UFS, poeta, documentarista.
Apêndices:
2 - O termo calvinismo está associado ao movimento implementado por João Calvino, seu maior líder e articulador do movimento reformado. Ele mesmo, como um humanista, rejeitou aquilo que era o coração da ideia de personalidade do Renascimento, a ideia de que o homem é a fonte criadora de seus próprios valores e portanto, no fundo, incapaz de pecar. Era estranho à mente de Calvino o pensamento de que as artes e as Ciências podiam estar livres da religião. Para ele, diferentemente do que ocorria com outros lideres da Reforma, não existia dicotomia básica entre o Evangelho e o mundo, entre o Evangelho e a cultura. Para Calvino, toda a vida, inclusive aquilo que é chamado livremente de cultura, era teônoma, isto ć, tem a sua razão de ser enquanto sujeita a Deus e à Sua lei (Knudsen, 1990, p. 14). Acrescento que a Teologia calvinista não é baseada apenas na obra de João Calvino e sim a partir dela e pelo trabalho de seus sucessores(ex: Teodoro Beza).
3 – Também conhecido como sistema representativo, os membros elegem seus oficiais que são representantes pactuais, estes eleitos formam seus concílios, que são assembleias formadas pelos pastores e presbíteros, diferente do episcopal cuja organização é hierárquica, com a autoridade máxima local exercida por um bispo.
Referências Bibliográficas:
1 - VANHOOZER, Kevin J. Autoridade bíblica pós-reforma: resgatando os solas segundo a essência do cristianismo protestante puro e simples / Kevin J. Vanhoozer; tradução de A. G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2017. Página 297.
4 - MATOS, Alderi Souza de. Os pioneiros presbiterianos do Brasil Alderi Souza de Matos. - S. Paulo: Cultura Cristã. 2004. Pág. 105.
5 - LÉONARD, Émile. O presbiterianismo brasileiro e suas experiências eclesiásticas / Émile Léonard, tradução Zilmar Heringer Nogueira – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2014. Pág 66.
6 - NASCIMENTO, Manuel Rodrigues do. Reminescências – flagrantes da vida da Estância a partir da última década do século passado. Aracaju: Livraria Regina LTDA. 1958. 2° volume. Pág 75.
7 - SOUZA, Raimundo da Silveira. Gente que conheci, coisas que ouvi contar. 3° edição. Aracaju: Fundação Teixeira, 2009. Pág. 45.
8 - NASCIMENTO. Ester F. V. B. C. do. PRÁTICAS EDUCACIONAIS PROTESTANTES NO SÉCULO XIX: O CASO DE SERGIPE. (2003). Cadernos CERU, 14, 157-176. USP.
9 - NASCIMENTO. Ester F. V. B. C. do. Origens da Educação Protestante em Sergipe 1884-1913. 2000. (Dissertação de Mestrado). UFS.
Excelente trabalho de resgate da história da IPB com ênfase em Estância. Parabéns aos perseverantes e incansáveis irmãos presbiterianos. Deus continue abençoando
A Igreja Presbiteriana de Estância tem uma relevante história, que se mistura com a história da cidade Jardim de Sergipe. Essa história merece ser resgatada.Parabéns pela pesquisa, Sami. Excelente trabalho. Que Deus continue abençoando!
Muito interessante. Não vejo a hora de visitar uma de suas igrejas. Excelente Artigo, cheio de informações.
Artigo perfeito. Texto impecável, rigorosamente fiel aos fatos. Narrativa clara e objetiva da história dessa igreja centenária de tradição calvinista: a Igreja Presbiteriana de Estância.Verdadeira aula. Parabéns ao autor.
Ainda semeando o envagelho de Cristo. A Deus seja toda Glória.
Muito importante, A Deus seja sempre louvado