Desde cedo, ouvi falar e participei dos festejos do padroeiro do bairro que já teve como alcunha, Além da Ponte. Uma das muitas maneiras de participar dos festejos do Senhor do Bonfim, é indo às missas do novenário; há quem prefira participar apenas da procissão, ponto alto e a culminância da festa. Muitas são as reminiscências que carrego desse momento importante e marcante, que se repetia ano após ano, durante toda a minha infância e juventude. Sem dúvidas, os desfiles de abertura realizados pela Lira Carlos Gomes não estão gravados apenas em minhas memórias, mas de muitas e muitos conterrâneos de bairro. Épicas e inesquecíveis alvoradas sempre foram a marca registrada das comemorações que acontecem todo verão, sempre ao final de janeiro, mais precisamente na última semana do mês.
Os festejos do Senhor do Bonfim datam do início do século XX[1], tendo sido a capela construída na segunda metade do século XIX, conforme indicam os jornais da época. Esse fato demonstra a importância do santo para o antigo bairro Além da Ponte, e conforme indica a historiografia religiosa da cidade, o padroeiro deu nome à fábrica e ao bairro. Não o contrário! Os festejos, desde a sua fundação, contaram com a “realização de diversões populares”[2], como shows pirotécnicos, quermesse e apresentações de bandas. Outra memória que guardo viva são os enormes tapetes construídos na Avenida Senhor do Bonfim, antiga vila operária da zona oeste da cidade. Ou ainda, dos parques de tração manual que se instalavam na praça em frente à igreja.
Decerto, todo esse arsenal de fé e devoção marcam a qualquer pessoa, de crianças a idosos, de jovens a adultos; e cada um carrega em si, uma lembrança boa das festas do Senhor do Bonfim. Como foi o caso da minha mãe e das minhas tias maternas, que vinham do interior da Bahia para apreciar a renomada festa. Outro dia, me peguei ouvindo umas vizinhas a dialogarem enquanto varriam as suas calçadas, subitamente, me veio à memória mais uma nuance desse festejo tão marcante, popular e participativo. No diálogo alheio sequestrado pela audição sensível do autor, aquelas duas senhoras, questionavam o fim das bandeirolas, um dos muitos símbolos dos festejos do padroeiro da colina sagrada. Hoje, algumas mudanças burocráticas transformaram a feição mais popular da festa: as bandeirolas; elas, apesar da simplicidade, são uma memória afetiva que quase todos nós bonfinenses carregamos, contudo, deixaram de fazer parte da festa.
Tradicionalmente, eram distribuídos papéis de seda e cordões aos moradores do bairro, para a confecção de bandeirolas que ornavam as ruas durante a passagem do padroeiro em procissão. As bandeirinhas ou bandeirolas, eram parte da decoração e do compromisso da comunidade com a construção da festa. Um costume que perdurou por mais de meio século, uma espécie de patrimônio imaterial daquela comunidade. Fazer as bandeirolas e colocá-las na altura ideal, sempre envolveu a cooperação dos vários atores da comunidade, cristãos ou não, afinal, ajudar é espiritual e está além das nossas crenças, é uma partilha da bondade que há em nossos corações. Nada justifica a não continuidade desse momento de solidariedade e partilha comunitária, o custo não é dos mais altos e hoje o bairro conta com um distrito industrial têxtil dotado da malha viária necessária ao tráfego de veículos pesados, principal problema para a manutenção das bandeirolas.
Em tempos de muita tecnologia e poucas atividades manuais, acredito que o Senhor do Bonfim está clamando à volta das suas bandeirinhas, para que os seus pequeninos aprendam com os seus pais e adestrem melhor as suas mãozinhas. Recortar e colar, requer habilidades que vão além de somente tocar em telas. Os cliques são encantadores, mas que nesses dias - pelo menos - eles se resumam a registrar a construção familiar, das bandeirolas ou do almoço do domingo. Unir as famílias em torno de atividades artesanais e em conjunto, é um lindo caminho para fortalecer os lares e os laços entre pais e filhos, na comunidade do santo que não é junino, mas ama bandeirolas.
[1] Festa. A Razão. Estância, 24 de janeiro de 1909. p.2.
[2] ALMEIDA NETO, Dionísio de. A luz da fé no Jardim de Sergipe: aspectos históricos do catolicismo em Estância-SE (1632-2003). Paraná: Editora Prismas, 2016. p. 149-157.
Por Yoran Rayckard