Por Samuel Albuquerque
Historiador, professor da UFS e membro do IHGSE
Celebramos, neste ano de 2023, o centenário da historiadora Maria Thetis Nunes (1923-2009). Por conta dessa efeméride, tenho tomado parte em muitos eventos e ouvido belos testemunhos de intelectuais que conviveram de perto com a homenageada. Não faço parte desse seleto grupo. Minha experiência pessoal com Thetis foi rarefeita.
Quando ingressei no Curso de História da UFS, em fins dos anos 1990, Thetis já havia se aposentado. Esparsamente, em eventos acadêmicos, observava de longe a renomada historiadora. Adorava o uso estratégico que, nessas ocasiões, ela fazia dos óculos escuros. Em momentos enfadonhos para todos nós, lá estava Thetis: impávida e escudada pelos óculos escuros, que disfarçavam seu desinteresse e até alguns cochilos. Imito-a desde então.
Quando passei a frequentar e, depois, tornei-me sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, em meados dos anos 2000, Thetis já havia se aposentado, também, da presidência do IHGSE, onde esteve por mais de três décadas. Mas, ao menos em duas ocasiões, pude estabelecer um contato mais estreito com ela.
A primeira dessas ocasiões esteve ligada à produção do documentário “Ecos da Segunda Guerra Mundial em Sergipe”, que desenvolvi com alguns colegas de turma, para uma disciplina que cursávamos no Departamento de História da UFS, nos idos de 2003.
Com o apoio da equipe do antigo Centro Editorial e Audiovisual (CEAV) da UFS, gravamos a entrevista com Thetis na sala da presidência do IHGSE. O historiador Ibarê Dantas já era, de fato e de direito, presidente da “Casa de Sergipe”. Ainda assim, colhemos o testemunho no pequeno gabinete. O ambiente era lúgubre, pesado, quente. Jamais imaginaria que, alguns anos depois, estaria aboletado do outro lado da mesa daquela sala, presidindo o Instituto.
Como já previa, pelo que dela ouvira falar, fomos tratados com educação e distância. Calor humano em abundância, somente o dos nossos corpos jovens, em decorrência da temperatura do ambiente. Thetis já estava cansada, na aparência e no ânimo. Foi minha percepção.
Passados alguns meses, ainda em 2003, uma grata surpresa. Tornei-me frequentador do Conselho Estadual de Cultura, na Biblioteca Pública Epifânio Dória. Foram muitas e muitas tardes, lendo e transcrevendo um raro documento que estudei em minha monografia de graduação, sob a orientação da professora Terezinha Oliva (mestra e amiga desde àqueles tempos).
O referido documento estava sob a guarda da senhora Ana Luiza Ribeiro Garcez, secretária do Conselho, que, com atenção e interesse, supervisionava minha labuta. Thetis aparecia sempre por lá. Tinha assento no Conselho. Sempre me observava. Certa feita, não conteve sua curiosidade diante do rapaz silencioso que lia e transcrevia um manuscrito antigo e perguntou o que tanto eu fazia ali.
Tornei a me apresentar. Contei-lhe da minha pesquisa com Terezinha. Dessa vez, Thetis foi simpática e até acolhedora. Ouviu tudo com atenção e, de quebra, disse-me: “então foi você que escreveu sobre a preceptora alemã do Escurial. Li o texto que publicou no jornal. Gostei muito”. Ela se referia ao artigo “A missão de uma educadora alemã em Sergipe”, que, semanas antes, havia circulado na imprensa.
Naquela tarde, deixei o Conselho Estadual de Cultura com o corpo amiudado em relação ao ego. As palavras de Thetis foram, na verdade, uma grande dose de estímulo ao aprendiz de historiador. Mas, seja como for, meu contato efetivo deu-se não com a historiadora, mas com sua obra.
Ainda na graduação, mas já mirando o mestrado em Educação, fui estimulado pelo professor Jorge Carvalho Do Nascimento a ler a “História da Educação em Sergipe” (1984). Foi meu primeiro contato relevante com a historiografia de Thetis. Desde então, tornei-me um leitor atento de todos os seus trabalhos.
A partir de 2007, primeiro como professor contratado de uma faculdade particular e, depois, como professor efetivo da UFS, passei a trabalhar com disciplinas de História de Sergipe. No campus de Laranjeiras, já se vão 15 anos ministrando as disciplinas História de Sergipe I e História de Sergipe II. Isso explica, em grande medida, meu apego ao legado intelectual de Thetis.
Em 2021, em pleno isolamento pandêmico, publiquei pela Editora UFS (e sob o patrocínio da Lei Aldir Blanc) o livro “Felisbelo, Thetis e Ibarê: contribuição aos estudos de História da historiografia”. Na segunda parte da obra, editei uma série de artigos que, em 2017, havia publicado na imprensa, pondo em revista a obra de Thetis. Assim, facilitaria a vida dos meus alunos (e a minha, também), reunindo em livro os desdobramentos das minhas notas de aulas.
Porém, não quis chover no molhado e repetir, aqui, o que já está impresso e divulgado no livro de 2021. Lembrei-me de um texto ainda inédito, intitulado “Thetis, a montanha e as moscas”, que jazia inconcluso desde maio de 2014, quando apresentei sua primeira versão em uma palestra do Ciclo de Estudos de História da Literatura Sergipana, evento promovido pelos departamentos de História e Letras da UFS e pela Academia Sergipana de Letras, no auditório da Sociedade Médica de Sergipe – SOMESE.
Reescrevendo-o, decidi dedicá-lo (e o faço agora) a um grande amigo de Thetis, um grande amigo meu também, que, certamente, se emocionaria com as homenagens que estão sendo feitas. Refiro-me ao querido Luiz Fernando Ribeiro Soutelo, ausência tão sentida nas celebrações de agora. (Continua nas próximas edições)