Apuração demonstrou que, durante oito anos, a Lei de Cotas foi aplicada sem qualquer atuação da UFS para impedir a prática de fraudes
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública com pedido de reparação aos danos causados à coletividade pela demora da Universidade Federal de Sergipe (UFS) em fiscalizar a ação afirmativa de cotas raciais. As cotas estão previstas na Lei 12.711/2012, que reserva vagas a alunos pretos, pardos e indígenas nos processos seletivos para ingresso nos cursos de graduação das instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação.
Segundo o MPF, as comissões de heteroidentificação implantadas pela UFS para apuração de casos de fraudes denunciados à sua Ouvidoria constataram o ingresso ilícito de 114 estudantes em vagas reservadas a pretos, pardos e indígenas, entre os anos de 2016 a 2020. As vagas ocupadas por tais alunos, que não fazem jus às cotas raciais, foram subtraídas da ação afirmativa prevista em lei, cujo objetivo é ampliar o acesso dessa população ao ensino superior com a finalidade de reduzir a sua sub-representação nas universidades. Por isso, este é o número de vagas que o MPF pede à Justiça que a UFS destine a estudantes cotistas nos próximos processos seletivos.
De acordo com a ação, durante cerca de oito anos as cotas raciais foram aplicadas sem qualquer atuação da Universidade para impedir a prática de fraudes, o que ensejou prejuízos concretos à ação afirmativa. Isso porque, nesse período, centenas de alunos ingressaram nos cursos de graduação com base única e exclusivamente em suas autodeclarações como negro (preto ou pardo), mesmo que esses ostentassem características próprias de pessoas brancas, em casos gritantes de fraude.
Jurisprudência – O MPF se baseia no entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186 e sustenta que as cotas raciais devem ser destinadas às potenciais vítimas diretas do racismo e da discriminação racial, sendo essa a razão pelas quais as comissões de heteroidentificação analisam se determinado candidato possui um conjunto de características físicas que permitam considerá-lo como negro, no contexto local. Assim, para a destinação das cotas raciais, o que importa é a imagem do candidato, ou seja, se este é ou não percebido, socialmente, como uma pessoa negra, e não o fato de possuir eventuais antepassados negros, sob pena de esvaziar a política pública.
O MPF entende que o combate a fraudes em seus processos seletivos é um dever das universidades federais, com base no poder de autotutela da Administração Pública, que detém o controle da legalidade de seus próprios atos. Além disso, a Portaria 18/2012 do Ministério da Educação, que regulamenta a aplicação da Lei de Cotas pelas universidades, dispõe de forma expressa que a prestação de informação falsa pelo estudante, apurada posteriormente à matrícula, em procedimento que lhe assegure o contraditório e a ampla defesa, ensejará o cancelamento de sua matrícula, sem prejuízo das sanções penais.
Outros pedidos – O MPF também pede que a UFS seja condenada a reparar danos extrapatrimoniais no valor de R$ 800 mil, referente ao período de tempo em que se deixou de realizar qualquer fiscalização à aplicação da ação afirmativa de cotas étnico-raciais em seus processos seletivos. O recurso deve ser aplicado, como forma de compensação, em ações voltadas à redução da sub-representação dos negros e indígenas na UFS, como a implantação de programa de permanência e assistência estudantil (bolsas, moradia e alimentação); políticas de pesquisa voltadas para os cotistas negros e indígenas (bolsas de iniciação científica de ações afirmativas); campanhas internas e externas sobre as ações afirmativas voltadas às populações negra e indígena e informação sobre o público efetivo de destinação das cotas raciais; programa de formação para a diversidade racial do corpo discente, docente e técnico-administrativo; promoção de debates públicos sobre as temáticas da democratização da universidade e da diversidade racial; criação de uma Pró-Reitoria de Ações Afirmativas.
Histórico – Em junho de 2020, o MPF instaurou inquérito após o recebimento de denúncias de diversos casos de fraude às cotas étnico-raciais relacionadas a alunos que se encontravam matriculados em cursos de graduação da UFS. Durante as investigações, o MPF constatou que, até 5 de junho de 2020, a Ouvidoria da Universidade também havia recebido mais de 180 denúncias de fraude às cotas.
No entanto, mesmo diante do grande número de denúncias recebidas, a Universidade ainda não havia implementado, até aquele momento, uma sistemática de apuração de fraudes às cotas raciais por meio de comissões de heteroidentificação e a instauração dos correspondentes processos administrativos.
Como não poderia permanecer inerte diante das denúncias, o MPF expediu recomendação para que a UFS apurasse os casos de fraude noticiados à sua Ouvidoria e adotasse as providências devidas.
Dessa forma, a UFS publicou editais e convocou 135 discentes denunciados pela prática de fraude às cotas raciais, para que comparecessem perante comissões de heteroidentificação destinadas à apuração de denúncias de possíveis irregularidades na autodeclaração de pretos ou pardos. Desses, 91 foram considerados inaptos porque não reuniam o conjunto de características fenotípicas de pessoas negras. Vinte e três dos alunos convocados não compareceram perante a comissão.
No âmbito administrativo, a UFS informou ao MPF que seguem tramitando processos administrativos quanto aos alunos reprovados pelas Comissões de Heteroidentificação, que poderão resultar no cancelamento de suas matrículas.
Número para acompanhamento processual: 0800823-67.2023.4.05.8500
Assessoria de Comunicação
Ministério Público Federal em Sergipe