O segundo turno das eleições presidenciais de 2022 entregou a menor distância entre um presidente eleito e seu adversário: 2.139.645 votos, ou 1,8% dos votos válidos. Essa foi a extensão da vitória de Luís Inácio Lula da Silva sobre Jair Messias Bolsonaro. A menor, em número de votos, desde 1989. A mais estreita, em termos percentuais, da história presidencial brasileira.
O triunfo nas urnas foi atingido com uma união de forças raras vezes vista na política nacional. A terceira e o quarto colocados na primeira rodada da disputa declararam apoio ao nome de Lula. Aquela, inclusive, passou a participar ativamente da campanha do petista. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, adversário triunfante em duas corridas presidenciais, também expressou preferência pelo vitorioso de domingo. Assim também o senador José Serra, por Lula derrotado em 2002 (e por Dilma Rousseff, em 2010).
Ao movimentar-se em direção ao centro, indicando o ex-governador paulista Geraldo Alckmin como candidato a vice-presidente, de modo semelhante ao que fizera ao escolher o senador mineiro José Alencar, em 2002 e 2006, Lula começou a montar as condições de governabilidade de seu próximo mandato. Ao acolher como companheiro de chapa um ex-adversário de centro-direita, a quem vencera há 16 anos, ele sinalizou disposição para compor um governo distante de radicalismos. Para além de mais votos, acenou para a formação de uma maioria parlamentar apta a lhe garantir condições de administrar o país.
Contudo, o resultado das urnas deixou claro que estabelecer essa maioria para governar não será fácil. A Coligação Brasil da Esperança, pela qual concorreu Lula,não dispõe do número de assentos da Câmara dos Deputados, nem do Senado Federal, aptos a garantir a aprovação de projetos de lei, muito menos de emendas constitucionais. As suas propostas de campanha, para serem realizadas, terão de ser negociadas com adversários, dentro do Congresso. A montagem de uma base de governo imporá, mais uma vez, a prática do “presidencialismo de coalizão”.
Coalizões são muito mais frequentes em regimes parlamentaristas, quando os partidos precisam se unir para compor a maioria que governará. No momento parlamentarista do Brasil Império, algo bastante interessante aconteceu. É certo que toda a experiência institucional dos anos 1822-1889 é peculiar no Brasil, um país nascente que tinha de desenhar as suas bases políticas do zero, depois da Independência. Mas, em meio a tantas peculiaridades (a começar por ser uma monarquia na América do Sul), as formações dos gabinetes de governo eram especialmente extravagantes, sobretudo se considerado o modelo inglês de parlamentarismo, que seria, em princípio, o referencial. Se lá a maioria governava, aqui dava-se algo esdrúxulo: o Imperador escolhia o governo que, convocando eleições,invariavelmente vencia – fraudando, inclusive – a disputa eleitoral, granjeando a maioria com a qual governaria. Era o “parlamentarismo às avessas”.
O Imperador assim agia porque dispunha de uma faculdade que as constituições europeias não concediam aos seus homólogos: o poder moderador. Entre outras prerrogativas contidas nesse quarto e extravagante poder, estava a de que ele podia dissolver, prorrogar ou adiar a Assembleia Geral, “nos casos em que o exigir a salvação do Estado” (artigo 101, inciso V, da Constituição de 1824).
Em determinado instante, porém, os dois partidos antagonistas desse período, o Conservador e o Liberal, uniram-se e formaram uma concertação: foi o “Ministério da Conciliação” (1853-1858). Chamado por D. Pedro II para chefiar um gabinete, o conservador Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês de Paraná (1801-1856), conseguiu reunir os antagonistas liberais em um mesmo ministério que os seus correligionários, em setembro de 1853.
Aqui é preciso abrir um parêntesis. Juridicamente, o modelo parlamentarista brasileiro foi construído aos poucos, mais pela prática do que pelo texto constitucional. Ele ficou mais ordenado quando, pelo Decreto 523, de 20 de julho de 1847, foi criada a figura do presidente do Conselho de Ministros, designado pelo Imperador. Antes, o Imperador nomeava todos os ministros. Dali em diante, ele só chamaria o presidente do Conselho, que, na sequência, convidava aos demais membros do ministério.
Nesse sistema, a instabilidade era a regra. Entre 1847 e 1889, houve 32 gabinetes, com durações variadas, mas nunca extensas. O primeiro período de chefia de Zacarias de Gois foi o mais curto: durou apenas seis dias, em 1862.O mais longo tempo contínuo de administração foi o de José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, que bateu os 4 anos e 3 meses, entre 1871 e 1875. A média de duração deles foi de apenas 15 meses.
O Marquês de Paraná, contudo, administrou por mais tempo do que isso: três anos. Não prosseguiu porque morreu em plena chefia do Conselho de Ministros. Na sequência, veio o primeiro gabinete de Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, que durou 243 dias e encerrou o período conciliatório.
No vigente modelo constitucional brasileiro não há monarquia, não voga mais o parlamentarismo, nem existe- apesar do delírio de alguns – o poder moderador. Os mandatos do chefe do governo são a termo certo, quadrienais. Permite-se a reeleição (que, pela primeira vez após 1989, não foi alcançada pelo presidente que a disputou). Mas, apesar dessas diferenças entre o atual regime político-constitucional e o monárquico, o experimento desse momento do Império não é absolutamente indiferente. Governar pede maiorias parlamentares. No Brasil, elas reclamam, desde muito tempo, frentes amplas, acordos, coalizões ou conciliações.
Autor: José Rollemberg Leite Neto