Conta a história que o Santo de Assis, por sua radicalidade evangélica, despertou, sem proferir uma só palavra, muito mais conversões do que os grandes oradores sacros do Medievo. Ele, com seu bom propósito de imitar Jesus, na simplicidade e na amabilidade para com todos, sem qualquer distinção de raça, classe, condição, reacendeu a chama do amor-serviço, despertando, nos corações juvenis de uma Itália envelhecida pela caducidade de uma religião inserta na corrupção, na busca dos lucros, no encantamento pelos títulos de nobreza, uma resposta autêntica ao chamado missionário.
Fernando de Bulhões y Taveira de Azevedo foi um dos jovens que se deixou fascinar pelos ideais franciscanos, embora já estivesse com o coração gravado pelo amor a Cristo, na Ordem dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho. O que poderia levar um jovem migrar de uma ordem religiosa para outra, sobretudo para uma que estava despontando, no universo cristão, com a alcunha dos fétidos e esmolambados, os loucos de Assis? A resposta o tempo se incumbiu de no-la apresentar, sem grandes dificuldades.
É que o grupo de Francisco de Assis povoou as cercanias da Porciúncula e, mais tarde toda a Europa, como num passe de mágica. Jovens de assoberbada condição social, com excelente formação intelectual, grassados em retórica, direito, filosofia, astronomia, aritmética, dentre outras, viram-se abandonando tudo para se tornarem frades do Louco de Assis. A inserção nos bolsões de miséria, na massa sobrante de uma gente rude, destituída de qualquer esperança em dias melhores, foi vista como um sinal divino entre os mais arrogantes seres humanos que manobravam nas sociedades tradicionais do Velho Mundo.
Uma espécie de fumaça do Espírito Santo encarregava-se de inebriar o olfato de homens e mulheres, moças e rapazes e os trazia para a turma da loucura. Era um êxtase advindo de uma força misteriosa e igualmente esquisita que paralisava projetos econômicos, agrários entre famílias que, há muito, tinham negociado os mais faraônicos casamentos. Houve verdadeira revolução nas famílias europeias, devido ao atrevimento do jovem filho de Pietro di Bernardoni, que o desfiara em praça pública, ao se desnudar, recusando-se a paternidade luxuosa que ostentava belo brasão familiar, desde as priscas eras.
O Jovem Cônego de Santo Agostinho ficara sabendo do que ocorrera a missionários franciscanos, lá para as bandas do Marrocos, como foram mortos, por causa do Evangelho de Cristo. Num belo dia, no cais portuário, inúmeros corpos dos mártires missionários foram expostos, numa demonstração de que a força temporal, afeita ao brio do ouro e das terras, aos títulos de nobreza e ao desejo de manipular os fracos, estaria vencendo os devaneios dos loucos de Assis. Fernando viu em tudo aquilo o rastro do Grito de Jesus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes”? Seus dias não foram mais os mesmos... uma agonia lhe invadira a alma e ele se tornou inseguro da vocação à Ordem dos Regulares, revelando-se a si mesmo que seu lugar deveria ser bem longe das belíssimas instalações dos Cônegos.
Partia o jovem teólogo, de uma brilhante intelectualidade, de uma oratória sem paralelos, ao encontro dos franciscanos. Era uma mudança radical, tanto quanto o foi o ato de desnudar-se do Pai- Fundador. Agora, já franciscano, partira para o Marrocos, lembrando-se da imagem de tantos frades martirizados pela missão de anunciar, com genuína autenticidade, o Evangelho de Cristo. A doença o devolveu, após um interregno, e o fez habitar a província romana, onde teve oportunidade de conhecer pessoalmente São Francisco, considerado o “Trovador de Deus”. O Santo Louco o chamou de “meu bispo”, pela pujança de sua palavra, pela retórica que a todos encantava, pela profundidade de saber e pela mística tão verdadeira.
Tornou-se professor de teologia e memorável pregador de sermões dos mais belos sermões que o orbe católico já conheceu. Mas, foi na simplicidade da missão de cozinheiro, no convento onde residia, que ele realizou maravilhas, ao dar comida aos pobres. Daí surgiu a devoção aos “pães de Santo Antônio”, expressão de sua ardente caridade para com os miseráveis que acorriam à porta do convento, para o desjejum. Conta-se que Santo Antônio desviava da dispensa os pães para dá-los aos pobres, mesmo que viessem a faltar na farta mesa dos confrades. E que certo dia, pego nessa situação, na dispensa, houve uma repentina multiplicação dos produtos, de modo que os pobres e os frades se fartaram.
O tempo passou, e Santo Antônio continua a ser invocado como o Pai dos pobres, sobretudo com a tradição do Pão de Santo Antônio. Mas, uma coisa é certa: há muita admiração dos devotos à vida e á missão do Santo de Lisboa, mas existem exageros nas celebrações, com pompas exacerbadas, com flores em demasia e com fogos que espoucam a esperança de transformar o mundo pela revolução do espírito franciscano tão afeito ao Santo Antônio dos Pobres.
Num tempo em que a retórica, a homilética, o saber teológico-pastoral e a mística do serviço estão em desuso, é mister recobrar o ideal de Santo Antônio, para não deixarmos morrerem de fome os pobres desabrigados das chuvas, das estiagens, da ganância, da disputa fundiária, da insuficiência de empregos, da inexistência de hospitais, de assistência social. Enquanto se afronta o Santo, com o barulho vazio e ensurdecedor dos fogos, com o perfume transgênicos das flores, os pobres de Santo Antônio caem desvalidos, em sarjetas e vielas, em cortiços e sob marquises, nas gélidas madrugadas chuvosas, no intenso calor das chamas que destroem barracos, nas filas infindáveis à espera de remédio, carinho e atenção.
Se houvesse uma assembleia entre os santos franciscanos, estes nos enviaram uma missiva, em que se leria: “não entendestes nada do que foi solenemente proclamado, no silêncio retórico que, por anos a fio, inundou de lucidez os ouvidos e os corações da população de Assis”. Assinado, o Martelo do Evangelho, a Arca do Testamento, Arauto do Evangelho e Amante da Pobreza. Rogai, por nós, Santo Antônio dos Pobres e dai-nos inspiração para sermos mais servidores e menos barulhentos. Amém.
Por Jeronimo Peixoto
Colaborador da Tribuna Cultural