Luiz Eduardo Oliva (*)
Morreu Elza Soares. A notícia espalha como rastilho de pólvora invade as redes sociais e logo está no topo dos Trending Topics do twitter. Uma mulher que desafiou todas as lógicas do caminho do sucesso ao morrer vira uma espécie de comoção nacional.
Uma história que antes só se via nos contos de fada, uma espécie de gata borralheira da música: preta, pobre, favelada, que foi forçada a casar aos 12 anos e enfrentar todos os tipos de agruras, vai do topo da fama ao ostracismo, recupera-se e se transforma numa das mais instigantes personagens dos século XX e XXI.
Logo me vem à mente uma canção de Moraes Moreira que dizia: “com a bola no pé e a viola na mão/ vê se você destrincha/ que eu sou Elza Soares/ eu sou Mané Garrincha/com a bola no pé e viola na mão/o que é, o que é?/eu sou menino pobre/nobre eu sou o rei Pelé”. A letra, do próprio Moraes, diz tudo. Diz de um país que se fez muito mais como identidade pelas mãos, pés e cabeça dos desvalidos do que de uma elite que inclusive usurpa de símbolos da própria brasilidade.
Moraes Moreira, um sambista baiano, um artista, um cigano como ele mesmo se auto define na canção, também vem da pobreza, de uma cidade baiana Itauçu, distante 470 km de Salvador e onde morou outro gênio da música brasileira, Gilberto Gil quando o seu pai medicou por anos naquela cidade.
Que perspectivas tinha um brasileiro nascido no final da década 40 numa região pobre e afastada, interior da Bahia? Já famoso Moraes comparou-se ao casal nascido em condições adversas como ele e conquistou o mundo: um pela bola outra pela música. Daí porque o nome da música a que aqui se refere é “O que é, o que é?”
O brasileiro pobre estava condenado a trabalhar de sol a sol, uma continuidade do tempo da escravidão. Moraes, na música diz: “Mamãe eu não quero, mamãe eu não quero/ Trabalhar de sol a sol/ Quero ser cantor de rádio e jogador de futebol” que era a possibilidade, das raras, naqueles anos de uma educação voltada quase exclusivamente para a classe dominante: ser cantor de rádio ou jogador de futebol era uma possibilidade de ascensão social.
Para Moraes Moreira, tanto Garrincha, o improvável gênio das pernas tortas, nascido numa desconhecida cidade de Pau Grande no Rio de janeiro e que fez o mundo curvar-se em reverência literalmente aos seus pés, como aquela mulher negra, favelada, vindo do que ela mesma chamou de “planeta da fome”. Os dois, do improvável, se transformaram em símbolos para todas as gerações seguintes. Eles formaram sim, pelas contingências da vida e pelo estupendo talento que possuíam, num dos mais notórios casais brasileiros unindo o samba no pé e a voz/viola na mão.
Quando Moraes nos versos rima o menino pobre com nobre, para ele o verdadeiro nobre foi o rei Pelé. Nele estaria a verdadeira nobreza, não aquela advinda dos títulos nobiliárquicos pela herança de uma impostura com uma insistência nefasta de um tal sangue azul mas a nobreza advinda da conquista por esforços próprios num mundo desigual, preconceituoso, não inclusivo. Então, Moraes pergunta, já respondendo: “Com a bola no pé e a viola na mão vê se você destrincha, eu sou Elza Soares eu sou Mané Garrincha”. Não precisa dizer mais nada. Já estava dito e destrinchado. O Brasil real, o Brasil vencedor vem desses brasileiros nascidos nas situações mais adversas superando todos os obstáculos para se transformarem nos verdadeiros vencedores.
Elza Soares e Mané Garrincha, cada um ao seu modo, mas os dois juntos e misturados, nas suas histórias e na própria história enquanto casal, são exemplo do Brasil que vence preconceitos, constrói a própria brasilidade, se amaram tanto infinitamente enquanto durou a relação e, por ironia do destino, morreram num 20 de janeiro, ele 39 anos antes. Elza era a maior cantora brasileira viva. Um mito, a voz do milênio dita não pelos brasileiros, mas pela BBC de Londres. Louis Armstrong o jazz corporificado em lenda, conheceu Elza nos anos 60 do século passado e quis levá-la aos Estados Unidos. Aquela Brasileira encantou o maior cantor de jazz do planeta. Ela, no entanto, preferiu os dribles desconcertantes do seu Mané Garrincha à glória americana.
Foi uma mulher de posição, à frente do seu tempo, exemplo para várias gerações. Chico Buarque, avocando o samba “Se acaso você chegasse” (Lupicínio Rodrigues/Felisberto Martins) consagrado na voz de Elza Soares disse: “nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza”. Rui Castro, biógrafo de Garrincha, um dos maiores escritores sobe a música brasileira e que conhecia bem Elza escreveu: “indômita, invencível, que ninguém destruiria”. Elza, para sempre! A mulher símbolo. A voz do milênio. A brasilidade na sua mais perfeita tradução.
(*) Artigo Publicado no Jornal da Cidade/SE, edição nº 14.539 de 22 a 24 de janeiro de 2022, onde Luiz Eduardo Oliva() escreve quinzenalmente.
(*)Advogado, poeta, ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.