Entre as muitas incertezas geradas pela pandemia do novo coronavírus, está a que abarca o futuro da economia, seja ela no âmbito dos investimentos privados ou públicos. Isso porque, para combater o vírus e enfrentar a doença causada por ele, foram necessários ajustes nas finanças em todas as esferas – federal, estadual e municipal.
Os municípios, que já vinham sofrendo quedas de repasses, com a pandemia, tiveram que atender à população infectada e viram seus cofres esvaziarem ainda mais. Para ajudar aos Estados e municípios, o governo federal vem adotando medidas neste período, como liberação de mais de R$ 85 milhões, envolvendo transferências para a saúde, recomposição de repasses de fundos constitucionais e suspensão do vencimento de dívidas dos Estados com a União.
Vale lembrar que, muitos municípios sergipanos, que já sofriam os prejuízos da estiagem – quando muitas Prefeituras haviam decretado situação de emergência ou calamidade pública pela seca –, seguiram o Governo do Estado, com novos decretos de calamidade em consequência da pandemia. É o recurso jurídico para poder prorrogar dívidas e tentar manter o equilíbrio das contas, já que o orçamento para 2020 foi fechado no ano passado, quando ainda não era possível prever essa instabilidade.
LIBERAÇÃO
Nesse cenário, as entidades representativas, como a Confederação Nacional dos Municípios – CNM – e a Federação dos Municípios do Estado de Sergipe – Fames – vêm trabalhando em pautas que possam aliviar a situação econômica dos municípios, como a complementação do Fundo de Participação dos Municípios – FPM – em relação aos valores de 2019; a suspensão de dívidas previdenciárias; flexibilização imediata de emendas parlamentares; e solicitação de recursos para a assistência social.
Na última semana, eles tiveram uma vitória: a sanção da Medida Provisória 938, que concedeu o valor de R$ 16 bilhões a Estados e municípios, justamente em razão dessas perdas. O cálculo da compensação foi realizado pela diferença entre a arrecadação do Imposto de Renda – IR – e do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI –, nos períodos de março a novembro de 2019 e 2020.
O presidente da Fames, Christiano Cavalcante, prefeito de Ilha das Flores, classifica a situação dos municípios hoje como “muito difícil”. “Estamos em uma pandemia em que não houve preparação nenhuma para o que estamos vivendo. Não tínhamos precedentes na história mundial de uma crise sanitária dessas”, justifica.
PERDAS
Christiano continua: “é nos municípios que as pessoas vivem, então é lá que elas vão procurar a solução para os problemas. Compete aos municípios a atenção primária de saúde, então o primeiro atendimento dos pacientes com Covid-19 é na atenção básica, que, de uma hora para outra, ficou superlotada, com uma síndrome que pouco se conhecia”.
Tudo isso acabou gerando perdas para os entes municipais. “Houve sim uma perda muito grande de receita devido ao isolamento social. Caiu muito a circulação de mercadorias, então o ICMS, que é uma das principais receitas dos municípios, caiu bastante”, revela.
Por outro lado, o Fundo de Participação dos Municípios, que é composto do IPI e Imposto de Renda, também sofreu uma perda muito forte, porque o Governo Federal concedeu o deferimento dos impostos para muitas empresas.
IMPOSTOS
“Isso acabou gerando um retardamento na data de pagamento desses impostos e outras empresas simplesmente suspenderam o pagamento deles. A União vem batendo recorde negativo na arrecadação dos seus impostos, e isso reflete na receita dos municípios”, analisa.
Na tentativa de minimizar essas perdas, houve, segundo Christiano, a criação de compensação para algumas receitas do ICM e do FPM, mas em outras, como o Fundeb, ocorreu uma queda acentuada e não houve nenhuma recomposição.
“Hoje, a despesa da educação é a principal do mundo e toda a perspectiva é de que ela vai, até o final do ano, mais de R$ 74 bilhões na arrecadação”, aponta. Com esse cenário, a ajuda do Governo Federal tem sido fundamental.
REPASSE FEDERAL
“Sem dúvida nenhuma, apesar da falta de liderança que se esperava que o Governo Federal exercesse frente a essa pandemia, trazendo informação de qualidade, informações científicas, direcionado o trabalho dos municípios, a ajuda que o Governo repassou para os Estados e municípios, foi essencial para que todos pudéssemos combater a pandemia nesse momento”, argumenta Christiano.
Isso porque, com a queda de arrecadação que houve, se não houvesse um repasse extraordinário para saúde e recomposição do FPM aos valores do que foi repassado no ano passado, até o mês de novembro os municípios não estão garantidos.
“Com o repasse extra da Lei Aldir Blanc para o setor de cultura, com certeza os municípios não teriam conseguido passar por esse momento. Então, a ajuda financeira do Governo Federal foi, e ainda está sendo, fundamental para que os municípios consigam vencer o Covid-19 e melhorar todos os indicadores”, assegura o presidente da Fames.
CENÁRIO DE GUERRA
Sem os recursos, para ele, o cenário nos municípios seria de guerra. “A mortalidade teria sido muito maior, os municípios e Estados não teriam capacidade financeira para fazer frente contra o vírus”, acredita.
Christiano tem essa visão, porque, segundo ele, municípios e Estados não têm reserva financeira nenhuma, ao contrário da União, que tinha vários fundos com recursos, a exemplo é do Fundo Nacional de Cultura.
“Esse fundo tinha quase R$ 4 bilhões, que o governo repassou para os municípios e Estados através da Lei Aldir Blanc. Além disso, tinha as reservas internacionais, entre outros. A União tem uma capacidade financeira muito maior, então sem essa ajuda financeira nós teríamos um número muito mais elevado de mortes”, opina.
TRÂMITES
No caso da recomposição das perdas do FPM, o Governo garante que o FPM a ser repassado esse ano, vai ser igual ao ano passado. Ou seja, se a arrecadação cair e o repasse for menor, o governo repassa no mês seguinte a complementação para garantir que o valor daquele mês seja exatamente igual do repassado ao ano anterior.
Já os recursos da Lei Aldir Blanc servem para conceder uma ajuda financeira para os artistas, de até R$ 600, durante três meses, para custeio da manutenção de entidades culturais, como: museus, bibliotecas, escolas de músicas etc. Podem ser utilizados para manutenção do espaço ou para o custeio de lives e apresentações de artistas locais.
Os recursos enviados diretamente para o enfrentamento do coronavírus foram repassados para a Saúde, para aquisição de medicamentos, contratação de profissionais de saúde, EPIs e reforço no trabalho da atenção básica.
CRITÉRIOS
Já o recurso repassado para assistência social pode ser utilizado para o atendimento à famílias em estado de vulnerabilidade social, ou seja, para garantir o alimento das famílias mais carentes do município, com a aquisição cestas básicas ou doação para essas famílias.
“Nesses casos, os critérios técnicos para a definição disso são os casos testados e notificados pela Secretaria de Estado da Saúde; a população: quanto maior o município, maior o valor; e os índices de casos do coronavírus confirmados no território do município: quanto maior o número de casos, maior o valor recebido”, esclarece.
MUNICÍPIOS
O município de Aracaju, até 31 de julho, havia empenhado, em despesas da Covid, aproximadamente R$ 60,8 milhões. Do lado da receita, em recursos específicos para a Covid, o município havia recebido algo em torno de R$ 40,4 milhões.
“Além disso, o município havia recebido R$ 14,9 milhões para recompor quedas na arrecadação do Fundo de Participação dos Municípios e R$ 35,1 milhões para recompor parte das perdas dos demais tributos, entre eles o ISS (Imposto Sobre Serviços) e o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços- ICMS), revela Jeferson Passos, secretário municipal da Fazenda.
Segundo Jeferson, os recursos recebidos precisamente para Covid são utilizados, essencialmente, no pagamento da remuneração dos profissionais de saúde que estão envolvidos no combate à pandemia, na aquisição de medicamentos e insumos para o funcionamento dos hospitais, seja o de Campanha, o Fernando Franco ou as unidades básicas de saúde envolvidas no combate à pandemia.
UTILIZAÇÃO
“Além da aquisição de equipamentos dos serviços necessários para o funcionamento dessas estruturas”, ressalta o secretário. Em relação ao montante recebido a título de auxílio para a recomposição das perdas do FPM, ISS e ICMS, a maior parte do recurso é utilizada essencialmente no pagamento de salário dos servidores e dos demais serviços que o município contrata.
“Como manutenção da cidade e funcionamento dos serviços públicos”, explica. Ele ressalta que, por isso, os recursos encaminhamos pelo Governo Federal para o combate à pandemia tem sido essenciais para que os serviços existam e a Prefeitura pudesse ampliar a capacidade de atendimento à população.
“Sem esses recursos, realmente não haveria condição de fazer esse enfrentamento, e também eles têm sido extremamente relevantes para que os demais serviços da cidade continuem funcionando, o pagamento dos fornecedores do município continue ocorrendo dentro do prazo e, principalmente, o pagamento do salário dos servidores ativos e aposentados”, reforça Jeferson Passos.
PROJEÇÕES
Até o momento, de acordo com ele, esses recursos têm sido suficientes. No entanto, as projeções, segundo o secretário, são de que até o mês de dezembro, dado a perspectiva que a retomada da atividade econômica não deverá ocorrer com velocidade, o município continuará tendo baixa arrecadação de tributos, queda do FPM e do ICMS.
“Dessa forma, esses recursos são insuficientes para manter o nível de receita que o município necessita, principalmente num momento em que as despesas com saúde, principalmente, têm aumentado. Até por causa disso se faz necessário a prorrogação desses auxílios do Governo Federal até o final do ano”, pondera.
O município de Tobias Barreto também vem vivenciando essa crise financeira, à qual o prefeito, Diógenes Almeida, soma mais uma: a da credibilidade. “Porque essa história de que veio muito dinheiro para a Covid nos prejudicou. Quem já não ouviu dizer que a gestão municipal recebe mais dinheiro toda vez que os óbitos aumentam? Isso não é verdade”, afirma Diógenes.
DÉFICIT
De acordo com o gestor, o município estava com um déficit de aproximadamente R$ 6,2 milhões até julho: R$ 3,5 milhões do Fundo da Educação Básica – Fundeb, R$ 2 milhões do ICMS e cerca de R$ 600 mil com a arrecadação própria. “O que temos recebido do Governo é uma espécie de reparação a toda essa perda”, diz o prefeito.
O gestor do município de Itabaiana, Valmir de Francisquinho, também sabe bem o que é isso. “A crise econômica, ocasionada pela pandemia, é grave. Ou melhor dizendo: é gravíssima! Até porque as consequências dela vão perdurar por muito tempo ainda”, avalia Valmir.
Para ele, se a retomada gradual da economia é importante, mais importante ainda será a forma como os gestores, especialmente os municipais que assumirão no ano que vem, vão se comportar “diante de uma realidade de queda nas receitas, servidores sem poder receber aumento salarial e o Governo Federal cada vez mais endividado”.
CRISE
No caso específico de Itabaiana, ele diz que embora os números ainda estejam sendo totalizados pela contabilidade, as quedas são consideráveis. “Posso adiantar algumas coisas. Por exemplo: neste mês de agosto, faltando ainda um repasse, o Fundo de Participação dos Municípios teve queda de cerca de 20%”, revela.
Já nas receitas próprias, que ainda estão sendo contabilizadas, ele diz que o IPTU, cujo calendário de pagamento se encerrava em março, foi adiado. “Ou seja: não entraram recursos nos cofres municipais, pois quem é que pagaria antecipado um imposto diante de tantas inseguranças e incertezas com a própria saúde e com a de seus familiares?”, questiona.
Valmir de Francisquinho diz que é preciso que os gestores entendam esse momento e coloquem os pés no chão cada vez mais. “Graças a Deus, temos conseguido honrar com nossos compromissos, mas isso porque a nossa gestão é responsável desde o início. Isso nos deu uma pequena margem, mas que temos que estar atentos todos os dias em relação ao fluxo de caixa, pois se piscar o olho, tudo vai por água abaixo”, admite.
ESTADO
Sergipe, até o último dia 20 de agosto, havia recebido, aproximadamente, 124 milhões – recursos que fizeram toda a diferença no enfrentamento à Covid-19, como explica Davi Fraga, diretor de Planejamento, Orçamento e Gestão de Convênios da Secretaria de Estado da Saúde.
“Esses recursos estão sendo utilizados para aquisição de insumos, medicamentos e materiais médico/hospitalares; contratação temporária das equipes assistenciais, bem como aquisição de EPI’s (Equipamentos de Proteção Individual) diversos”, especifica.
Além disso, também custeiam parcialmente os valores pagos aos leitos mobilizados junto aos hospitais filantrópicos e particulares para complementar a rede estadual, considerando as limitações legais.
VALORES
Sem esses recursos, segundo Davi, considerando a queda na arrecadação e o recuo da economia, o Estado não conseguiria realizar as medidas de enfrentamento à covid.
"Certamente, nenhum Estado do Brasil conseguiria atender a necessidade de saúde da população, frente a expansão do acesso ao sus necessário ao enfrentamento à emergência de saúde pública pelo novo coronavírus”, ressalta.
No caso de Sergipe, os recursos foram imprescindíveis para que o Estado complementasse sua rede de acesso com a expansão própria possível, mobilizando a rede filantrópica e privada, adquirindo todos os itens necessários ao pleno atendimento à população. “Resguardando, claro, as dificuldades e faltas mercadológicas, considerando que o mundo correu atrás dos mesmos itens”, reitera.
FISCALIZAÇÃO
Ao mesmo tempo em que há a necessidade de liberar os recursos para a utilização na pandemia, também é fundamental fiscalizar a destinação dele, já que são essenciais para garantir o tratamento dos infectados e não podem estar indo para mãos erradas. Isso alertou órgãos fiscalizadores e gerou questionamentos na sociedade.
Na última semana, o presidente do Tribunal de Contas do Estado – TCE/SE –, o conselheiro Luiz Augusto Ribeiro, apresentou ao colegiado a avaliação da transparência dos municípios sergipanos nas aquisições e contratações realizadas durante o período de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.
“O TCE tem intensificado sua atuação no enfrentamento da pandemia em várias frentes de trabalho, como acompanhamentos e fiscalizações coibindo abusos, alertando municípios e o Estado, em atendimento aos princípios constitucionais na administração pública”, afirma Luiz Augusto Ribeiro.
PORTAIS
A avaliação dos portais foi feita pela Diretoria de Controle Externo de Obras e Serviços – Dceos –, por meio da Coordenadoria de Auditoria Operacional, e seus resultados serão distribuídos e submetidos para as respectivas relatorias para providências junto às unidades jurisdicionadas. As informações obtidas demonstram que 74 das 75 prefeituras possuem sítios oficiais específicos relacionados à Covid-19.
Outro item observado, a “disponibilização de informações sobre as aquisições/contratações relacionadas à COVID-19 em seção específica”, não está presente nos portais de 12 Prefeituras, enquanto as outras 63 disponibilizam apenas em parte.
O TCE desenvolveu, ao longo dos últimos anos, um método consistente para avaliação e fiscalização de portais de transparência que tornam viáveis acompanhamentos específicos, como este sobre o tema da Covid-19, cuja intenção é alertar os municípios no sentido de melhorar a qualidade dos dados divulgados.
PANORAMA
Segundo o coordenador de Auditoria Operacional do TCE, Gidel Matos, esse trabalho demonstra um panorama da atual situação da transparência nos gastos públicos realizados para o combate à pandemia em Sergipe, “bem como da disponibilização ao cidadão de acesso à informação por via eletrônica”.
A advogada Raquel Tavares, vice-presidente da Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos e Combate à Corrupção da Ordem dos Advogados do Brasil em Sergipe – OAB/SE –, lembra que, em virtude da pandemia da Covid-19, no início do ano foi aprovada a Lei 13.979/2020, permitindo a contratação emergencial por dispensa de licitação. Embora as regras originais tenham sido relativizadas por causa da pandemia e justificadas pela situação emergencial, não significa dizer que está permitido o mau uso do dinheiro público.
“Obviamente, aumentam-se os riscos de desvios e superfaturamentos e com isso também aumenta a responsabilidade social do cidadão na fiscalização, através de um controle social direito ou indireto. Para tanto, o cidadão precisa efetivamente fiscalizar através dos portais de transparência todas as contratações e destinações e, em caso de verificação de alguma irregularidade, denunciar anonimamente ao Ministério Público Estadual, aos órgãos de Controle Externo e Interno, ou até mesmo à OAB para orientar e intermediar no oferecimento da denúncia”, diz Raquel Tavares.
GASTOS
De acordo com ela, a responsabilidade com o dinheiro público precisa ser observada pelos gestores em qualquer momento. “Não somente durante a pandemia. A responsabilidade com o dinheiro público deve ser observada sempre, afinal, as contas públicas são nossas contas, dinheiro do povo, e esse dinheiro deve ser sempre aplicado em benefícios e serviços ao cidadão, bem como deve ser destinada às áreas corretas em conformidade com a lei”, ressalta.
Segundo Raquel, não é mais admissível uma gestão pública em desconformidade com a lei. “É preciso despertar o cidadão da consciência de sua responsabilidade no controle social dos gastos públicos; não basta cobrar e criticar nas redes sociais, é preciso participar efetivamente do controle social e da prevenção à corrupção”, destaca.
Ela diz que a Comissão busca sempre estar atenta aos processos de destinação dos recursos públicos, embora o papel institucional da OAB não seja o de efetuar o controle por si só.
“Para isso, já existem os órgãos de controle externo e interno, bem como o Controle Social, que deve ser realizado pela própria população”, lembra Raquel Tavares.
Segundo a advogada, o principal objetivo da OAB, através da Comissão, é levar ao cidadão o conhecimento de seus direitos e do seu papel no processo democrático, no que diz respeito ao efetivo controle social pela população, incentivando a própria participação popular na fiscalização e na influência no processo de tomada de decisões do poder público. Afinal, a busca de recursos e o uso deles deve ocorrer exatamente para atender ao cidadão.