A vigilância sanitária de Minas Gerais abriu uma investigação para apurar se uma bactéria que matou cinco bebês em Uberaba há três anos é a mesma que agravou o quadro de saúde de um homem com Covid-19 de Manaus que morreu após ser transferido para a cidade mineira.
O surto da Enterobacter cloacae provocou os cinco óbitos dos recém-nascidos em 2018 e, na época, interditou a UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital das Clínicas, vinculado à Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba.
A nova suspeita de infecção hospitalar é agora investigada no Hospital Regional da cidade de 337 mil habitantes, cujo nome presta homenagem ao ex-vice-presidente José Alencar (1931-2011).
A secretaria de Saúde do governo de Romeu Zema (Novo) informou à Folha que "o núcleo regional de vigilância sanitária de Uberaba já fez contato com o hospital para levantar mais informações e dar os encaminhamentos necessários".
O corretor de imóveis Erivaldo Américo de Assis, 48, embarcou em Manaus em um avião da Força Aérea Brasileira no dia 24 de janeiro com outros 17 pacientes com Covid-19 rumo à Uberaba. Todo o grupo foi internado no Hospital Regional.
O Amazonas contou com uma megaoperação da FAB, que transferiu 542 doentes por Covid-19 de Manaus para 19 cidades do país, após seu sistema de saúde colapsar pela súbita alta de internações muito acima da capacidade instalada de leitos e falta de oxigênio.
O estado de saúde de Erivaldo preocupava, já que 25% de seus pulmões estavam comprometidos pelo coronavírus, diz a médica veterinária Danielle Corrêa Américo de Assis, 27, uma das filhas da vítima.
Erivaldo deu entrada no dia 22 de janeiro na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Campos Sales, na zona oeste da capital manauara, onde ficou internado dois dias sentado numa poltrona no corredor do serviço de saúde à espera de um leito adequado.
A superlotação das unidades de saúde de Manaus foi presenciada pela reportagem da Folha, na semana anterior à internação de Erivaldo, no Hospital Platão Araújo, com pacientes com Covid-19 espremidos em salas de observação e nos corredores sendo abanados com pedaços de papelão por seus parentes.
"Mesmo assim, meu pai estava bem e falante. Ele fazia até piada para os outros internados que mal conseguiam rir por causa da falta de ar", afirma a filha.
Um dia depois de desembarcar em Uberaba, o corretor de imóveis passou por uma coleta de sangue para uma hemocultura. O exame detecta a presença de bactérias no organismo e aponta qual medicação pode ser usada para tratá-las.
O resultado do exame, na ocasião, não encontrou bactérias. Ele seguiu internado no Hospital Regional, mas seu quadro de saúde piorou. A filha diz que a equipe médica intubou Erivaldo após ele sentir falta de ar. "Eles disseram que, antes do procedimento, pediram autorização para o meu pai que, segundo eles, concordou."
"Mas só me ligaram depois para avisar que o meu pai estava sedado e intubado", completa a veterinária que, naquele momento, acompanhava o quadro de saúde do pai de Uberlândia (MG), onde recebeu ajuda de conhecidos.
Uma segunda hemocultura foi realizada quatro dias depois da entrada de Erivaldo no Hospital Regional José Alencar e, desta vez, o exame apontou a presença da Enterobacter Cloacae no organismo do paciente.
O exame, ao qual a Folha teve acesso, também listou nove medicamentos cuja bactéria era resistente. Erivaldo morreu no dia seguinte, por volta das 14h, diz a filha.
Segundo a família, a declaração de óbito apresentada pelo hospital relata que Erivaldo morreu por Covid-19, falência de múltiplos órgãos e sepse, infecção generalizada.
Danielle fez o reconhecimento do corpo do pai por videochamada, como a maioria dos familiares dos 63 pacientes do Amazonas que morreram após serem transferidos para outros estados.
O corpo de Erivaldo chegou a Manaus no dia 31 de janeiro num traslado feito por um avião da Casa Militar do Amazonas e foi enterrado no cemitério Recanto da Paz.
Danielle diz que só soube da presença da bactéria dias depois do enterro do corpo de Erivaldo, quando teve acesso aos resultados dos exames. "Numa pesquisa rápida na internet eu notei que Uberaba já tinha passado por um surto dessa bactéria que havia matado bebês. Eu quero saber até que ponto essa contaminação agravou o quadro de saúde do meu pai", diz a filha.
De acordo com Celso Granato, infectologista e diretor clínico do Grupo Fleury, a Enterobacter Cloacae agrava o quadro clínico do paciente. "Ela é encontrada em pessoas que ficam muito tempo internadas em hospitais."
A Enterobacter cloacae causa uma infecção generalizada (septicemia) difícil de ser debelada. Por ser muito resistente a antibióticos, a bactéria provoca uma infecção que toma conta do organismo e gera a chamada falência múltipla dos órgãos. Ou seja, vários órgãos, como rins, pulmões e coração, param de funcionar e o paciente morre.
Presente no intestino das pessoas, onde é inofensiva, a Enterobacter cloacae sobrevive bem fora de seu meio natural. Por ser eliminada com as fezes, ela acaba contaminando as pessoas em situações de falta de higiene.
Por isso, diz Granato, os hospitais precisam fortalecer os protocolos internos de controle de infecções, isolar os pacientes acometidos pela bactéria e intensificar a higiene e a paramentação do corpo clínico para "a bactéria não se espalhar pelos leitos".
OUTRO LADO
A Folha pediu à secretaria de Saúde de Minas Gerais os resultados das hemoculturas realizadas nos demais pacientes de Manaus que morreram no Hospital Regional, mas o órgão disse que não "fornece nomes ou resultados de exames".
Já a direção do Hospital Regional disse, por nota, que Erivaldo deu entrada na unidade "já com pneumonia viral e exames laboratoriais demonstraram processo infeccioso em curso." Mas o hospital não informou se Erivaldo tinha a bactéria Enterobacter Cloacae antes de chegar a Uberaba.
Segundo o hospital, o comprometimento pulmonar do paciente estava em 70% com consolidação nas bases, evidenciando processo infeccioso bacteriano secundário na tomografia realizada já na internação.
"Após 12h de internação, o paciente evoluiu para insuficiência respiratória com saturação baixa (76%), com necessidade de intubação. A condição clínica deteriorou rapidamente com descompensação hemodinâmica após 36 horas da internação com falência renal, sem possibilidade de hemodiálise."
O Hospital Regional disse ainda que é uma unidade hospitalar de referência para Covid-19 e segue rigorosamente o padrão e protocolos para pacientes em cuidados intensivos, além das recomendações preconizadas pelas autoridades sanitárias para tratamento dos pacientes acometidos pela doença.
Todos os 18 internados de Manaus, diz o Hospital Regional, foram submetidos a exames para detectar a presença do vírus Sars-Cov-2. "Destes, 13 testes apresentaram detectável", com resultados liberados no dia 27 de janeiro.
O hospital disse que tentou fazer a análise genômica de todos os pacientes para saber quem estava contaminado pela nova variante do coronavírus, mas apenas seis amostras tinham material genético suficiente para o procedimento. "O resultado mostrou que todas as seis amostras sequenciadas foram classificadas como linhagem/variante P.1.", afirmou.
O hospital não esclareceu se os seis resultados positivos para a nova variante são de pacientes que morreram. Entre o corpo clínico envolvido no atendimento aos manauaras, quatro apresentaram sintomas de Covid-19, sendo que dois tiveram resultado positivo para a doença confirmado em exames.
Os profissionais de saúde também foram submetidos à análise genética para saber se foram expostos à nova variante de coronavírus, mas, "até o momento, não há resultado".
"Importante informar que, desde os primeiros sintomas, os quatro [profissionais de saúde] foram isolados, seguindo o protocolo para a doença. Dois já cumpriam o período de isolamento e retornaram às suas funções. Todos tiveram sintomas gripais leves".