Os ponteiros marcam meio-dia. O sol, escaldante como de costume nos fevereiros de Salvador, faz brilhar o mar do Porto, vizinho do Farol, ambos no bairro Barra. “Carnavalizou”, ironiza a baiana de acarajé Rosilene Brandão, 35 anos, enquanto arma o tabuleiro no intermédio entre os pontos turísticos, neste domingo de carnaval, 14. “Brincadeira, mas a verdade é que estamos com um sentimento muito grande, o ano aqui só começa depois de fevereiro”, diz, já em tom de tristeza.
Neste ano, os circuitos Dodô (Barra/Ondina), reduto de camarotes e emissoras de TV, Osmar (Centro) e Batatinha (Pelourinho) não viram e nem vão ver a cara dos trios elétricos - e de uma multidão atrás deles - por determinação das gestões estadual e municipal. A pandemia de covid-19 torna impossível, até imaginar, dois milhões de foliões nas ruas. O que é comum, em Salvador, por dia de festa.
Baiana de acarajé há 30 anos, Rosilene costuma trabalhar no circuito Osmar, onde chega a vender 800 acarajés e abarás por dia. Hoje, decidiu ir à Barra pela proximidade das praias que, embora teoricamente fechadas, receberam uma grande quantidade de visitantes.
Rosilene até estranha a pouca movimentação para a época, mas argumenta que, por mais que deixe de ganhar o triplo do que ganha nos demais meses do ano, não há clima ou condições sanitárias para uma folia segura. Cita ainda as milhares de vidas perdidas para a doença em todo o País.
“É tão surreal perceber que estamos aqui, no carnaval, e não temos um terço de pessoas circulando, não temos clima, só calor mesmo. Muita gente que trabalha nesse período não vai poder contar com isso e é muito triste. Muito estranho viver isso em tantos anos de trabalho”, afirma.
Àquela altura em 2020, no domingo de carnaval, os trios já estariam em fileiras para iniciar o quarto dia oficial da folia baiana. Também havia cerca de 4,5 mil ambulantes posicionados para trabalhar nos circuitos. Ao todo, 16,5 milhões de pessoas circularam pela cidade ao longo dos sete dias, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA) informou à época.
Agora, o que se vê de movimento na extensão que vai do Morro do Cristo ao Farol (etapa inicial dos desfiles) se resume à circulação de ciclistas, banhistas e, nos bares das imediações, grupos de no máximo oito pessoas por mesa. Na Avenida Anita Garibaldi, um dos principais acessos ao circuito Dodô, a circulação dos carros nem de longe lembra os longos engarrafamentos costumeiros do carnaval.
Sem carnaval, Salvador tem prejuízo
O cancelamento do evento, que reflete na vida de comerciantes formais e informais, também chega à receita de Salvador. Segundo afirmou o prefeito Bruno Reis (DEM), na sexta-feira, 12, a cidade deixa de arrecadar cerca de R$ 15 milhões só em Imposto Sobre Serviços (ISS).
A avalanche socioeconômica é uma realidade também para o ramo da hotelaria. De acordo com Roberto Duran, presidente da Salvador Destination, organização responsável por captar eventos e promover a capital como destino, há apenas cerca de 60% de ocupação nos hotéis, o que recai na quantidade de empregos gerados.
“Era algo já esperado no cenário em que estamos há quase um ano. Sem dúvida alguma, são danos muito grandes e que já são sentidos por todas as áreas do turismo. A ocupação é 50% inferior, considerando o ano passado, isso reflete em emprego e renda, claro. As pessoas até estão vindo, mas muito mais para destinos de praia, como Praia do Forte, no Litoral Norte, já que não tem carnaval”.
Dono de um restaurante no circuito Dodô, Antônio Farias, de 50 anos, explica que costuma limitar a entrada de pessoas durante a folia mas, ainda assim, consegue lucrar o dobro dos outros meses em função da rotatividade. “Infelizmente, foi uma medida necessária. Não posso negar, porém, que há um prejuízo grande para a gente. Eu, inclusive, nem sequer me recuperei dos sete meses em que passamos fechados no início da pandemia”, afirma, sem citar valores.
Gestora de eventos, Mariana Soares, 27, veste o amor pela folia. Com o abadá do Camaleão, um dos blocos mais tradicionais de Salvador, diz que “vive o carnaval”. Isso porque além de gostar muito da festa, ela trabalha comercializando abadás de blocos e camarotes. “A gente fica muito triste, hoje seria um dia que estaríamos já preparando para a concentração do bloco. Mas, infelizmente, sabemos que foi necessário”, comenta ela, que já garantiu participação em 2022.
Marido de Mariana, o analista de sistemas Wesley Luso, 35, compartilha do mesmo pensamento. “A gente vive disso, mas é aguardar e curtir o próximo ano, não havia qualquer condições de realizar um evento desse porte agora, as condições sanitárias não permitem”, reforça ele, também vestido a caráter.
Já para o vendedor de cocos Leonardo Santos, 29, haveria condições para a realização do evento. “Os bares têm gente do mesmo jeito. A gente perde muito sem isso, quem trabalha perde muito. Mas não tem o que fazer, o jeito é aceitar”.
Santos trabalha nos circuitos há cinco anos, em alguns dias vende coco; em outros, cerveja. Segundo ele, até a movimentação de turistas é “muito menor”. Reforça que a festa tinha que acontecer, mesmo informado de que ainda não há vacina para todos.
Foliã assídua, a psicóloga Laura Marques, 25, tirou o dia para correr. “Queria que fosse atrás do trio, mas tudo bem. Importante é nossa saúde”.
Acompanhada de duas amigas, ela comenta a realização das lives de artistas que comandam o evento, como Cláudia Leitte, Ivete Sangalo e Léo Santana, que se apresentaram pela internet, neste fim de semana. “Não fosse isso, estaríamos até agora presos em 2020. Óbvio, está longe de ser a mesma coisa, mas pelo menos dá pra poder virar a página”, pondera Luana.
Nada de sair correndo atrás do trio do ídolo, Márcio Vitor, ou de “dar a louca” na pipoca do BaianaSystem. Também não vai rolar ponto de encontro com os amigos no Morro do Gato, em Ondina, ou a preparação para o famigerado arrastão, na Quarta-feira de Cinzas. “Que a gente possa, ano que vem, ter de volta nossa festa linda, que faz a gente esquecer de todos problemas.”