Há exatamente 170 anos, o Brasil tomou uma medida que seria determinante para a sua histórica concentração fundiária. Em 18 de setembro de 1850, o imperador dom Pedro II assinou a Lei de Terras, por meio da qual o país oficialmente optou por ter a zona rural dividida em latifúndios, e não em pequenas propriedades.
Atualmente, apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2.000 hectares (20 km²), mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira. Por outro lado, 60% das propriedades não chegam a 25 hectares (0,25 km²) e, mesmo tão numerosas, só cobrem 5% do território rural. Os dados são do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Antes de chegar às mãos de dom Pedro II, a primeira lei agrária do Brasil independente percorreu um lento e tortuoso caminho dentro do Senado e da Câmara. O projeto da Lei de Terras entrou no Parlamento em 1843, baseado num anteprojeto redigido por conselheiros do imperador. Após sete anos de debates, negociações, impasses e reviravoltas, os senadores e deputados enfim deram ao projeto de lei a versão definitiva.
Documentos da época hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, revelam como a composição do campo brasileiro foi planejada. Os próprios senadores e deputados eram, em grande parte, senhores de terras. O senador Costa Ferreira (MA), por exemplo, discursou:
— Isso de repartir terras em pequenos bocados não é exequível. Só quem nunca foi lavrador é que pode julgar o contrário. São utopias. Ninguém vai para lá [o interior do país]. Ninguém se quer arriscar.
O argumento dele era que os pequenos camponeses não tinham força para expulsar os indígenas e que, por isso, era natural que a terra fosse para os grandes senhores. Costa Ferreira continuou:
— Existem nas províncias muitas terras, mas algumas não se acham demarcadas nem são beneficiadas porque estão infestadas de gentios [indígenas]. Nas minhas fazendas já tenho tido alguns prejuízos por essa causa em gado, escravos etc. A maior parte dos [pequenos] lavradores da minha província não lavra para o interior porque o gentio não os deixa. Mas um lavrador poderoso, logo que entra, pode beneficiar as terras. Muito lucra, pois, a nação em se venderem as fazendas nacionais a particulares que as cultivem.
Na época do Império, embora o Brasil fosse agrário e dependesse da renda gerada pela exportação do café, a zona rural estava mergulhada no caos e na insegurança jurídica. Ao contrário de hoje, poucos eram os fazendeiros com o registro da propriedade. Eles eram os donos das chamadas sesmarias, terras doadas de papel passado pelo rei português, ainda nos idos da Colônia, com a exigência de que fossem cultivadas. Sendo extensas demais e tendo só um pedaço efetivamente explorado, as sesmarias viviam sob o constante risco de serem confiscadas.
Em 1823, logo após a Independência, dom Pedro I proibiu a doação de novas sesmarias, mas não pôs no lugar nenhuma nova regra para a apropriação da zona rural. No vácuo legal, as pessoas começaram a invadir as terras públicas desocupadas. Nesse Brasil despovoado, ainda longe dos 10 milhões de habitantes (hoje são 210 milhões), havia terras livres de sobra. Assim, por meio da simples ocupação, surgiram humildes camponeses cultivando para a própria subsistência e também poderosos latifundiários plantando para a exportação.
Na ausência do título oficial da propriedade, tanto pobres quanto ricos não passavam de posseiros e, como tais, também corriam o risco de terem a terra confiscada a qualquer momento. Enquanto os sesmeiros eram minoria, os posseiros eram maioria.
— No Brasil, têm sido esbanjadas as terras — queixou-se o senador Bernardo Pereira de Vasconcellos (MG). — Só não é proprietário o que não quer ser. Depois da suspensão das sesmarias, qualquer apodera-se de terreno devoluto, fixa nele sua residência, planta, colhe e ninguém lhe disputa.
Para o senador Vergueiro (MG), o problema eram apenas os pequenos posseiros:
— Se não se puser obstáculo a essas invasões, apenas restarão algumas terras devolutas nas províncias do Pará, de Mato Grosso e de Goiás [as atuais Regiões Norte e Centro-Oeste inteiras]. Para as mais, acabam-se em pouco anos. E será isso útil? Não, é prejudicialíssimo não só aos interesses do Tesouro, mas da civilização, porque essa gente espalha-se pelo meio do sertão e barbariza-se, não reconhece autoridades senão as suas paixões.
O senador Carneiro Leão (MG) concordou. Na visão dele, apenas os grandes posseiros eram dignos da proteção pública:
— Em presença da inércia, do desleixo do governo, a população cansou-se de esperar e entrou sem mais cerimônia pelas terras da nação, prestando assim um verdadeiro serviço ao país, pois contribuiu para o aumento e progresso da lavoura. Não se pense que todas as posses se reduzam a uma pequena roça e à construção de uma casinha de palha. A princípio podia ser assim, mas depois em boa parte delas estabeleceram-se grandes plantações.
Para completar o caos fundiário do Império, não existiam limites claros entre uma terra e outra. Os sesmeiros evitavam a demarcação porque os técnicos que mediam os terrenos eram escassos e careiros. Os posseiros, por sua vez, porque não tinham escritura. Em razão das divisas nebulosas, os conflitos entre vizinhos eram corriqueiros.
— Há nas terras muitas posses de muitos donos. Cada um deles fixa os seus limites arbitrariamente. Quando há contestações, a questão quase sempre se decide pelo bacamarte [espécie de espingarda] — afirmou o senador Francisco de Paula Souza (SP). — Agora mesmo tenho notícia de que na Vila da Constituição [atual Piracicaba], em São Paulo, nos últimos meses houve 13 ou 14 assassinatos em consequência de questões de terras. Eu estou convencido de que esta lei é sumamente necessária, principalmente para prevenir os abusos e as violências que se praticam no interior.
Para tentar pôr alguma ordem no campo, o primeiro artigo da Lei de Terras dizia que não mais se toleraria a invasão de terras públicas. Quem desobedecesse a lei iria para a cadeia. A partir de então, elas seriam vendidas. No entanto, haveria uma anistia geral para quem vivia na corda bamba até aquele momento.
— Ora, se devemos providenciar para o futuro e passar uma esponja sobre o passado, essa esponja deve abranger posseiros e sesmeiros — defendeu o senador Vergueiro.
Dessa forma, os fazendeiros que haviam descumprido a exigência de cultivar suas sesmarias seriam perdoados, e os posseiros que tinham se assenhorado de terras que não lhes pertenciam ganhariam a escritura. Seria algo parecido com o que hoje se chama de regularização fundiária, recorrente em terras públicas ocupadas por particulares na Amazônia.
Na prática, porém, a anistia de 1850 alcançaria apenas os grandes posseiros. Os pequenos acabariam sendo barrados.
— Sabe-se quantas vezes têm acontecido que homens que apenas levam consigo um bocado de farinha dentro de um saco e uma foice e um machado ao ombro têm se introduzido no interior dos matos virgens das fazendas ou matas devolutas da nação, derrubando e roçando, e se apresentado dizendo: “Esta terra é minha, porque dela tomei posse”. Não é possível que a lei consinta em tal absurdo — indignou-se o senador Clemente Pereira (PA).
— Convém que sejamos generosos com aqueles posseiros dignos de equidade — disse o senador Visconde de Abrantes (CE), referindo-se aos grandes posseiros. — O homem empregou seu tempo, afrontou talvez perigos, sujeitando-se às febres que sempre aparecem depois das derrubadas da mata virgem, e foi regar a terra com o seu suor. Como se diz a esse homem que lhe tiramos o fruto de tantas fadigas? Um homem nessas circunstâncias, aventuroso e corajoso, é digno de proteção.
O grande obstáculo que a Lei de Terras impôs aos camponeses, afastando deles a anistia, foi a cobrança de taxas para a regularização da propriedade. Para os grandes posseiros, as taxas não pesavam no bolso. Para os pequenos, elas podiam ser proibitivas.
Não foi por acaso que a Lei de Terras nasceu em 1850. Duas semanas antes de ela entrar em vigor, outra norma histórica havia sido assinada por dom Pedro II: a Lei Eusébio de Queirós. Foi a primeira das leis abolicionistas. Por meio dela, o Brasil, pressionado pela Grã-Bretanha, proibiu a entrada de novos escravos africanos no território nacional. Embarcações britânicas passaram a interceptar navios negreiros no Oceano Atlântico e confiscar a carga humana.
Os latifundiários entenderam que a escravidão, mais cedo ou mais tarde, chegaria ao fim e que os seus cafezais corriam o risco de ficar sem mão de obra. A Lei de Terras eliminaria esse risco. Uma vez tornadas ilegais a invasão e a ocupação da zona rural, tanto os ex-escravos quanto os imigrantes pobres europeus ficariam impedidos de ter suas próprias terras, ainda que pequenas, e naturalmente se transformariam em trabalhadores abundantes e baratos para os latifúndios.
Da mesma forma, os pequenos posseiros que fossem expulsos de seus antigos lotes, excluídos da anistia por não poderem pagar as taxas previstas na Lei de Terras, também reforçariam o contingente assalariado dos cafezais.
Com base nesse mesmo raciocínio, os senadores afirmaram que o governo deveria fixar altos preços para as terras públicas colocadas à venda. O Visconde de Abrantes opinou:
— O preço deve ser elevado para que qualquer proletário que só tenha a força do seu braço para trabalhar não se faça imediatamente proprietário comprando terras por vil preço. Ficando inibido de comprar terras, o trabalhador de necessidade tem de oferecer seu trabalho àquele que tiver capitais para as comprar e aproveitar. Assim consegue-se que proprietários e trabalhadores possam ajudar-se mutuamente.
O senador Vergueiro apontou outra vantagem que os latifundiários teriam com as terras públicas sendo comercializadas a preços exorbitantes:
— Suponhamos que é impossível vender terras por esse preço. Quem quer adquirir terras, não podendo estabelecer-se em terras devolutas, há de comprá-las. E então sobe o valor das propriedades [privadas]. É um benefício aos atuais proprietários. Os donos de extensas sesmarias vêm a ganhar muito com esta lei.
O historiador Marcio Both, professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e estudioso da Lei de Terras, explica que o sistema colonial de sesmarias já havia significado a escolha do Brasil pelo latifúndio. Como havia a exigência de que as sesmarias fossem exploradas, o latifúndio e o trabalho escravo andavam de mãos dadas.
— Em meados do século XIX, no contexto de expansão mundial do capitalismo, o Brasil precisava oficializar a transformação da terra em mercadoria. É claro que, antes de 1850, a terra podia ser comercializada, mas essa não era a regra. A Lei de Terras veio como parte de uma série de reformas liberais que procuraram pôr o Brasil entre as nações ditas civilizadas.
Ainda de acordo com Both, a mudança do status das terras em 1850 teve ligação com a iminente mudança de status dos escravos:
— Até então, o poder do latifundiário se media pelo número de pessoas sob seu controle, principalmente escravos. Em épocas em que a terra não tinha fronteiras definidas nem documentos que comprovassem a titularidade, os escravos, sim, tinham registro, garantiam segurança financeira e eram até utilizados como garantia em empréstimos. Com a abolição da escravidão a caminho, a terra precisava ser transformada definitivamente em mercadoria e ganhar valor. O poder do latifundiário foi passando dos escravos para a terra.
Os senadores e deputados, no fim das contas, não incluíram na Lei de Terras o tal preço estratosférico para a venda das terras públicas. Acabou ficando a cargo do governo fixar o valor. Por outro lado, eles tiveram sucesso em barrar uma proposta de taxação das terras privadas. O anteprojeto escrito pelos conselheiros de dom Pedro II previa a cobrança anual de um tributo semelhante ao atual Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). No Parlamento, a grita foi geral.
— A simples enunciação desta proposição importa uma questão grave. Grave porque é odiosa. Odiosa porque tem em vista estabelecer um imposto — protestou o Visconde de Abrantes.
— Eu não me queixo pelo que me toca. Não me causa gravame pagar este imposto que se propõe, porque as minhas terras produzem, dão-me um lucro correspondente. Mas nem todos estão nestas circunstâncias — argumentou Vergueiro. — Meus vizinhos mesmo, que têm terras de inferior qualidade [e produzem pouco], não podem pagar isto. É muito pesado para eles. Não falo agora das terras que estão nos lugares mais remotos, nas províncias do interior, sem comércio de exportação
— Como se pode tributar o terreno que nada produz ou produz muito pouco? Bem vê o Senado que esta medida não só é oposta às regras da ciência, como à justiça e ao bom senso — acrescentou Francisco de Paula Souza.
Em tom dramático, o senador Costa Ferreira argumentou que a situação dos fazendeiros já era dura demais sem o imposto:
— Quem não é lavrador e se sustenta à larga dos rendimentos dos lavradores julga que eles são felizes. Mas quem é lavrador experimenta o peso das desgraças sobre seus ombros e no fim do ano, depois de empregar 90 ou 100 escravos na lavoura, recolhe uma quantia tal que apenas chega para sustentar sua família. Esse homem é que sabe a vida que passa. Legisladores, quereis aumentar a aflição ao aflito, vós que nunca experimentastes a necessidade? Este tributo não é só injusto, mas injustíssimo, porque carrega sobre uma classe que não pode suportá-lo.
Ele deixou no ar uma sutil ameaça ao governo imperial:
— É assim que se quer avexar os lavradores, que são os verdadeiros sustentáculos da Monarquia? Lembrai-vos, senhores, que a besta suporta a carga, mas a sobrecarga a sacode.
A Lei de Terras serviu de base para que latifundiários recorressem ao governo e até aos tribunais para ampliar suas propriedades. No lado oposto, sem dispor de informação, dinheiro ou influência, muitos sitiantes perderam suas terras. A anistia foi prorrogada várias vezes, beneficiando posseiros que invadiram terras públicas depois de 1850. Após a derrubada da Monarquia e a imposição da República, a elite agrária continuou no comando do país e a concentração fundiária, embora guiada por novas regras, pouco mudou.
Estudiosos da questão dizem que o histórico predomínio do latifúndio levou ao surgimento dos trabalhadores rurais sem terra e tornou rotineira a violência no campo. Também condenou a agricultura brasileira a um longo período de atraso técnico. A vastidão das propriedades permitiu que os fazendeiros mudassem suas plantações de lugar sempre que determinada terra se esgotava, avançando sobre novas fronteiras agrícolas e derrubando florestas. Caso os lotes fossem pequenos, eles teriam sido forçados a investir em novas tecnologias para aproveitá-los ao máximo.
— A sociedade e o Estado têm uma dívida histórica com camponeses pobres, indígenas, ex-escravos, descendentes de escravos — diz o historiador Marcio Both. — A concentração fundiária é um problema social, político e econômico que passa por toda a história do Brasil, desde a Colônia até o momento presente. É certo que, ao longo desse período, houve rupturas, como a Lei de Terras, de 1850, mas sempre com o fito de garantir a permanência daquilo que é estrutural.
Matéria originalmente publicada na seção Arquivo S do Portal Senado Notícias, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado.